17/10/2018 | às 17h55
Encerrando o projeto Oroafrobumerangue, o espetáculo teatral “Oxum’ íntegra o abebé (leque, em iorubá) de produções do Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA), que completa seu vigésimo ano de trabalho.Onisajé, diretora do NATA, divide a direção com o coreógrafo Zebrinha.
A montagem é também uma oferenda para a divindade da fecundidade e feita por muitas mãos. As atrizes convidadas Fernanda Silva, Ive Carvalho e Tati Dias compartilham com Fabíola Nansurê, artista residente, dão quatro facetas de Oxum que questiona e interpela o mundo organizado por homens, representado pelo elenco masculino que conta com Antônio Marcelo, Daniel Arcades, Nando Zâmbia e Thiago Romero.
O espetáculo é repleto de detalhes e referências, diante disso, o Correio Nagô deixa cinco motivos porque não deixar de ver o espetáculo.
#1 “Poderamento Femino Negro”
Cunhado como processo conceitual, a montagem dar poder ao feminino negro a partir do itan de Oxum. Longe da princesinha dondoca que por vezes Oxum foi caracterizada ocidentalmente, Onisajé ressalta como o poder passa integrar a história de Oxum e a torna possível para todas as mulheres.
A divindade que pode invalidar a produtividade da terra quando seu direito enquanto feminino foi menosprezado. É desse ponto que os personagens masculinos carregados de falas esnobe e pomposa, embevecida do machismo que se constituiu no ocidente e as toxicidades da masculinidades se afastam do foco de luz e estamos perante às qualidades de Oxum.
A montagem é uma provocação e chama literalmente mulheres para entrar em cena e quebrar a quarta parede da existência, de um mundo que as desqualificam. É uma experiência também de lavar, banhar-se de doçura, da solidária companhia entre mulheres. Ao invés da Oxum maliciosa que aprontou contra Obá, a primeira esposa de Xangô, Onisajé aposta em mulheres que acompanham a gestação da revolução na barriga umas das outras.
#2 Discussões Atuais
A peça é centrada no itan (conjunto de histórias e mitos) em que Oxum seca as fontes implicando na produtividade da terra, após receber a negativa para participar das reuniões de orixás masculinos que organizavam a terra.
A montagem faz paralelo a narrativa mítica tomando como caminhos discussões da atualidade, a exemplo de, como uma graduanda em letras enfrentar a banca do TCC com sua metodologia de revolucionar a linguística por um viés feminino, ou com a pagodeira que não recusa seu shortinho e o direito ao corpo.
Violência contra a mulher e o aborto são evidenciados como urgências de mulheres negras, visto os casos crescentes de feminicídio e a pauta de saúde pública com relação à mortalidade de mulheres negras nas clínicas clandestinas de abortos.
Longe de apenas tensionamentos, a dramaturgia de Daniel Arcades encaminha por resoluções, as problemáticas dada pela contemporaneidade com vistas no aspecto da ação da Iyalodê, título conferido à Oxum quando passou a assumir o lugar social mais importante entre as mulheres. Deixando sempre a pergunta no ar, “onde está o seu poder? onde você seca?”, o texto convoca o público feminino da plateia à pulsão emancipadora da divindade.
#3 Espetáculo litúrgico-antropológico
A pesquisa que fundamenta o espetáculo é orientada por Mãe Rosa d’Oyá, pelo Babá Ed Oladelê e a Egbomi Vanda Machado, professora doutora. A peça apresenta diversas informações sobre o legado de Oxum, como Osogbo, a capital da cidade que leva o nome Osun, localizada na Nigéria, além de adentrar em um repertório litúrgico pouco conhecido como o culto à Iyami Osorongá (poder ancestral feminino).
O culto é cercado de mistérios e no Brasil há pouco material sobre às mães ancestrais. Segundo a tradição do candomblé, o poder das mães ancestrais é manifesto em todas as mulheres. Em muitas culturas a imagem feminina sempre esteve atrelada a grandes desastres.
No entanto, responsavelmente, a direção de Onisajé reverencia ao poder ancestral e revista à história iorubá que muitas vezes são contadas por homens, o que poderia responder a ausência deste saber, afinal, quem não teme mulheres poderosas?
#4 Direção Artística
À frente da direção de arte do espetáculo, Thiago Romero, premiado pelo Brasken de Teatro (2017), com o espetáculo Rebola, assume a missão de dar ao espetáculo a opulência e a suntuosidade que são características marcantes na descritiva do reino da senhora de Osogbo.
Estampas africanas e coloridas, vasos e bancos de ouro compõe os aposentos reais da abelha rainha e dialogam com o figurino que tem colaboração de Tina Melo e faz uso da sobreposição de elementos dourados. As luzes enriquecem a obra e condensam as surpresas que a montagem resguarda.
É nítida a referência do filme campeão em bilheteira, Pantera Negra. Tronos e o visual arrojado do corpetes-armadura do Atelier Fabulous, aludem a ares da heroína elegante, sem perder as penas tradicionais dos pássaros, emblema das mães ancestrais.
#5 Musicalidade Ancestral
Extremamente musical, o diretor musical Maurício Lourenço e Joana Bocanera dão conta de ondular as vozes como as marolas do rio, domínio da divindade. É a partir da música que somos encorajados a descortinar os mistérios de Oxum. No palco, Joana entoa o lirismo da cena e em outras, a capela, ressoa o eco de dimensões mais profundas e com a presença de água.
Todas as atrizes também cantam, com destaque para o solo de Fernanda Silva que traz um canto em iorubá com modulações próprias e potentes. A musicalidade ancestral é um fator marcante da montagem, seria difícil falar da patrona das artes e da música sem este requinte.
Marcelo Ricardo é repórter-estagiário do Portal Correio Nagô.
Com a supervisão da jornalista Donminique Azevedo