Cemitério dos Pretos Novos mantem provas materiais dos horrores da escravidão negra
Nas pedras pisadas do Cais do Valongo, zona portuária do Rio de Janeiro, estão as memórias das dores e das formas de resistências da população africana e seus descendentes, vítimas da escravidão e do tráfico negreiro. As descobertas arqueológicas dos ancoradouros que recebiam os escravizados, a Pedra do Sal que viu surgir o samba, e as casas das Tias Baianas, que preservavam os batuques e rituais religiosos, contam parte significativa da história de ocupação negra no Brasil, em especial, no Rio de Janeiro, cidade que mais recebeu africanos traficados durante o regime de escravidão.
Essa história do holocausto negro também pode ser contada no Cemitério dos Pretos Novos, localizado na mesma região conhecida como Pequena África, no bairro da Gamboa. O cemitério teria sido utilizado, entre 1769 e 1830, para enterrar os africanos recém-chegados ao Brasil, mortos antes mesmo de serem comercializados. Daí o nome Pretos Novos. Estima-se que mais de 50 mil corpos negros foram enterrados ali, dando prova do horror da escravidão africana no Brasil.
“Este é um lugar para se pensar na escravidão, para se refletir sobre a história e para evitar que aconteça novamente. A tendência é se repetir. A história se repete quando não se tem memória”, defende Ana Maria de La Merced Guimarães dos Anjos, 63 anos, que cuida para que esse espaço seja preservado, mantendo viva a memória que ele carrega.
Dona Maria Merced é a responsável pelo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), fundado em 13 de maio de 2005 para manter o Museu Memorial e o Cemitério dos Pretos Novos, além de oferecer cursos e formações na área de história e preservação do patrimônio.
Tudo começou em 1996, ao realizar uma reforma no imóvel de número 34, da rua Pedro Ernesto, onde vivia com seu marido Petrúcio Guimarães e suas três filhas, Dona Merced foi surpreendida com a descoberta do que havia por baixo do solo da casa. “Quem primeiro chamou a atenção foram os pedreiros que estavam fazendo a obra e me questionaram: ‘Será que os antigos proprietários criavam cachorros? Tem muito osso embaixo da terra”’, lembra Merced, cujo nome, de origem espanhola, remete a Nossa Senhora de Merced.
“Ela é padroeira dos cativos e ‘generala’ da libertação”, conta revelando que a descoberta que a levou a mergulhar na memória da escravidão negra no Brasil trata-se mesmo de uma missão.
No local, além dos sítios arqueológicos, o visitante pode conhecer a história da escravidão por meio de vídeos, peças e documentos. Tudo bem recepcionado pelo casal Ana Maria Merced e Petrúcio, que ainda mantem um café no local, onde se pode degustar bebidas e lanches.
Prêmios e apoio
Diversos estudos arqueológicos já foram realizados no local e novas descobertas realizadas, revelando trata-se de uma importante prova material da dimensão do tráfico de africanos para o Brasil e da tragédia que foi a escravidão. O trabalho do IPN, em parceria com instituições de ensino e pesquisa, levou a um reconhecimento por parte do Estado, que o tornou Ponto de Cultura desde 2009 e que lhe concedeu, através do IPHAN, o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, no quesito “Preservação de sítio arqueológico”.
“Mesmo com a importância do que preservamos aqui e da divulgação que fazemos desta história é muito difícil encontrar apoio para a manutenção do espaço”, garante Merced. Atualmente o IPN se mantem por meio de cursos e da parceria com uma faculdade particular para oferecimento de uma pós-graduação em História e Turismo Cultural. “Aceitamos doações em dinheiro, em livros temáticos, em materiais de limpeza. Toda ajuda é boa”, acrescenta.
No site da instituição é possível realizar doações: http://pretosnovos.com.br/doacoes/
No final de setembro passado, Dona Ana Merced recebeu o convite da Howard University, em Washington, para apresentar o Memorial dos Pretos Novos e ficou impressionada com o interesse dos norte-americanos com a história. “Lá eu visitei o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana. É um prédio enorme que conta toda a história, por meio de imagens, fotos, vídeos, algo fantástico. As autoridades brasileiras deveriam conhecer, nem que fossem amarradas e levadas para lá para saberem da obrigação que tem com a memória deste país”.
História da Pequena África
Com o título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Cais do Valongo, sítio arqueológico localizado na zona portuária do Rio de Janeiro, teria sido porta de entrada de cerca de um milhão de negros escravizados vindos do continente africano, em especial de países como Congo, Angola e Sudão.
Este volumoso desembarque, ocorrido até a proibição do tráfico negreiro em 1831, fez da região a maior concentração de população negra na então capital federal. Logo, a região passou a ser ocupada por manifestações culturais e religiosas de origem africana, sendo destaque as casas das tias baianas, entre as quais se tornou famosa Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, que promovia encontros de samba e cultos sagrados às entidades afro-brasileiras.
Foi na região, que o músico Heitor dos Prazeres apelidou de Pequena África, onde os batuques e ritmos africanos se desenvolveram dando origem às primeiras Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Em 1916, Ernesto dos Santos, mais conhecido como Donga, registrou o primeiro samba gravado no Brasil, Pelo Telefone.
Mais não só de arte e alegrias marcam a história da Pequena África. A partir da segunda metade do século XVIII, o Cais do Valongo abrigou também o mercado de escravizados a céu aberto, atividade que até 1774, acontecia entre a Praia do Peixe, atual Praça XV, e a Rua Direita (hoje Rua 1º de Março), bem próximo dali.
Até o fechamento do porto em 1831, milhares de africanas e africanos, recém-chegados do continente negro, viviam entre a crueldade do comércio escravista e o descaso da sociedade e das autoridades.
Viviam sobre sua própria sorte.
Esta história passou a ser melhor contada a partir de 2011, durante as escavações realizadas para obras de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, quando foram encontrados os ancoradouros e uma grande quantidade de objetos de origem africana, incluindo peças ritualísticas.
Atualmente é uma das áreas de agitação cultural da cidade. Suas ruas, praças e largos continuam abrigando importantes manifestações culturais e religiosas como as rodas de samba, na Pedra do Sal ou no Largo São Francisco da Prainha, onde se localizam bares, restaurantes e uma estátua em homenagem a Mercedes Batista (1921-2014), primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A Pequena África, que abrigou ranchos carnavalescos, cultos de matriz africana e capoeira, e revoltas populares, como a da Chibata e a da Vacina, continua concentrando a memória negra.
Texto e fotos: André Santana, publicado em 20 de novembro de 2019
Outras referências:
Maior banco de dados sobre o Comércio Transatlântico de Escravizados: https://www.slavevoyages.org/
Em 2002, o ator e diretor Zózimo Bulbul lançou um filme chamado Pequena África.