Pessoas reunidas num pequeno espaço, isto é,
podendo, por conseguinte ampliar as suas trocas, são diferentes e são iguais.
E tem um potencial político extremamente forte,
e isso faz com que creio aqui que as não vão ficar como estão.
Milton Santos[1]
A internet nos tem garantido uma grande mobilização pela cidadania, dando conhecimento às múltiplas escalas da violação dos direitos civis e humanos sentidos, vividos, falados, replicados em distintos ambientes urbanos e rurais do Brasil e mundo afora.
Isso por hora também dar-nos a sensação de infinidade e distancia de alcance da equidade social, algo capaz de prover o humanismo entre nós seres bípedes pensantes.
Eis que ressurge a esperança como oxigênio que nos alerta às diversidades e adversidades, impostas nas coisas criadas pela e para minoria social representada na política e na economia. O que resulta em princípios não-coletivo sobre as coletividades em espaços diferentes.
Assim, o oxigênio nos alimenta de grandeza rumo à possibilidade do humanismo, pela resistência às práticas racistas que alicerçam as sociedades patrimonialistas e cristã, contra todas as outras diferenças não brancas.
Algo que Fanon (2005) abordou tratando das sociedades colonizadas e neo-colonizadas, explicando sobre as desventuras da consciência nacional. Chamando atenção que o combate pela democracia contra a opressão do homem vai sair progressivamente da confusão neoliberal universalista para desembocar, às vezes laboriosamente, na reinvindicação nacional. Ora, o despreparo das elites, a ausência de ligação orgânica entre elas e as massas, sua preguiça e, vamos dizê-lo, a covardia no momento decisivo da luta estão na origem de desventuras trágicas”. [2]
Se posicionando contra o Estado racista, corpos e mentes negras do Território Quilombola de Vazante, no município de Seabra na Chapada Diamantina (Bahia-Brasil), respiram nos últimos vinte anos a resistência ao projeto desenvolvimentista do governo estadual, que no uso do poder trabalha para inundar a história quilombola no vale do Rio Vazante. Tratasse de uma batalha contra as profundezas, é onde irá ficar mais de cem anos de memória viva na terra negra.
Lutar pelo direito à terra e ao território é princípio, essência e forma de vida dos quilombolas, sob a liderança de Seu Jaime Cupertino[3] (83 anos) e o querido mestre Júlio Cupertino[4]. Esses resistem por convicção do direito e sua força produziu um grande efeito na região, levando dezenas de comunidades ao encontro com a ancestralidade e identidade, se auto afirmando negras quilombolas.
A articulação política garantiu a certificação pela Fundação Cultural Palmares (FCP), conforme o Art. 68 dos ADCT[5] e o Decreto 4.887/2003, das comunidades de: Agreste, Olhos d’Água do Basílio, Baixão Velho, Lagoa do Baixão, Serra do Queimadão, Morro Redondo, Vão das Palmeiras, Cachoeira da Várzea e Mocambo da Cachoeira, Capão das Gamelas, Vazante, entre outras na última década.
Mas, não conseguiu a revisão técnica e de procedimento no projeto da Barragem de Baraúnas que segue ignorando os direitos quilombola. Estamos falando do Estado brasileiro que reconheceu o direito constitucional da identidade e propriedade da terra, que também financia a barragem sobre os sujeitos.
Em 2011, o diálogo entre a elite política da região e o governo estadual, movimentou ações de respaldo ao projeto e invisibilidade do direito à terra aos quilombolas. Usaram da justificativa que o barramento é importante para o abastecimento humano de 41.798 mil habitantes[6], do município de Seabra, acusando a insustentabilidade hídrica dos moradores da sede.
O município fica na Chapada Diamantina uma grande caixa d’água no centro do semiárido baiano, suas águas são ex/apropriada através do Rio Paraguassú, que no barramento de Pedra do Cavalo é bombeada por mais de 100 km para o abastecimento da Região Metropolita de Salvador (RMS), com população de quase cinco milhões de habitantes.
Para a população do semiárido a seca divulgada pelo governo em 2012, era realidade vivida dois anos antes. Mas, é inexistente a política estadual de monitoramento climático para a prevenção, o que deixa todos atônicos com os estágios críticos. A política melhor gestada no momento são os decretos de calamidade pública, instrumento não fiscalizado que encobre os desserviços dos gestores/as estadual e municipal.
O reconhecimento das calamidades pela ordem pública, viram fatos midiáticos para programas e projetos insustentáveis, que não produzem convivência com a seca e desenvolvimento regional.
São essas as questões que alimentam a defesa da terra e do território por Seu Jaime Cupertino e outras lideranças, todos denunciam o racismo institucional praticado pela Companhia de Engenharia Ambiental da Bahia (CERB)[7] – empresa pública responsável pela execução da obra. Em um seminário realizado na sede do Ministério Público do Estado (MPE), Seu Jaime trouxe a afirmação de que as águas não têm cor.
Quando você ver uma água vermelha, azul, ou preta ou verde, pode ver que ela passou por algum lugar de onde ela tirou tinta de alguma coisa e se coloriu. Mas a água não é branca, não é negra, e nem amarela, nem vermelha e nem de outra cor. A água tem que ser é água limpa que é o sobrenome da água, ou é água suja ou é água limpa, mas que água tem cor, não tem.[8]
Uma afirmação cheia de verdade e consciência, os procedimentos administrativos para o licenciamento vão dar cor a essa água e conta com a conveniência da FCP, que deveria defender os quilombolas no Estado Brasileiro articulada com o Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU). No entanto, suas ações são submissas e tem deixado os sujeitos ao prazer da violência estatal ou privada.
Tais questão se escurecem ao analisar a titulação do Território Quilombola de Vazante em 27 de julho de 2014, o primeiro território quilombola na história que atendendo ao Art. 51 dos ADCT[9] da Constituição Estadual de 1989. Assinado pelo ex-governador Jacques Wagner garantindo a propriedade da terra com uma área de 2.495 ha – em nome da Associação Comunitária Quilombola de Vazante.
O ato representou uma grande vitória da luta da população negra quilombola no Brasil.
Passados sessenta dias o governo voltou ao processo de inundação do Território de Vazante. O grau de violência aumentou pela informação disseminada no município que responsabilizava as quarenta famílias quilombolas de Vazante pelo atraso ao desenvolvimento e impedimento da construção da barragem. Os discursos feitos nas rádios da região acusavam “os quilombolas de não quererem a barragem da salvação”, conforme relatou João Evangelista – coordenador estadual do CEAQ-BA[10].
Eis, que os sujeitos de direitos passam a ser atraso ao desenvolvimento, fazendo com que movimentos surgissem contra os mesmos e não só de Vazante, mais todos que representam essa identidade social e política.
Levando às famílias quilombolas de Vazante o medo e a dor em sentir que perderão sua terra.
Quanto a FCP, essa realizou em 03/10/2014 na Igrejinha de Vazante uma audiência pública. Saio com o compromisso de efetivar a Consulta Prévia, conforme os procedimentos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na pratica nada aconteceu e se desenvolve a negação aos princípios e diretrizes da Convenção 169.
A Fundação sem ouvir as reivindicações dos sujeitos quilombola emitiu ao INEMA[11] a Carta de Anuência autorizando o licenciamento, para que séculos de vida, luta e conquistas sejam inundados, sem direito de defesa à memória, só pagamento compensatórios por beneficiamento da terra.
O ato da Palmares viola também o direito de Consulta Prévia, assegurado pelo Estado da Bahia com o Decreto 15.671/2014, que regulamentou a Lei 13.182/2014 – Estatuto da Igualdade Racial e de Combate a Intolerância Religiosa aos povos e comunidades tradicionais em território estadual.
Nesse decreto é estabelecido os procedimentos de consulta prévia em obras de infraestruturas, que gerem impacto em terras e territórios quilombolas, cabendo a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI) efetivar, porém, essa tem se omitido das responsabilidades.
Até o momento, o que se vê na cena política é o Estado e a sociedade racista, amparados pelo poder administrativo e jurídico exterminar o direito à diferença. Como bem afirma a socióloga Vilma Reis, é a burrice da intelectualidade daqueles de pele clara, considerados socialmente brancos no Brasil.
Por fim, em todos os debates realizados fica evidente que o projeto da Barragem de Baraúnas se viabiliza pelo racismo, estruturante da Administração Pública que permite a ignorância sobre documentos como os produzidos pelo ICMBio[12] sobre impactos do barramento no Parque Nacional da Chapada Diamantina e relatos de vida dos quilombolas.
A vivencia em séculos dos sujeitos provam a inviabilidade do barramento. Nas reuniões denunciam o atraso técnico dos estudos que fundamentam a obra, devido à falta de conhecimento da realidade hídrica atual.
Isso porque o Rio Vazante não dispõe de água para encher a barragem a ser construída. Há menos que esperem cerca de trinta anos, ou seja, construída uma adutora para encher a barragem, até lá a vida e memória dos quilombolas de Vazante já foi submersa nas águas com cor.
Por Diosmar Filho é geógrafo, professor e pesquisador – e-mail: ptfilho@gmail.com
Fotos: Maurício Reis
[1] Texto extraído do vídeo publicado pela Revista Raça, da Roda de Conversas, em 1999, onde homenageou e entrevistou o Geógrafo Milton Santos.
[2] FANON, Frantz. Os condenados da terra. In: Frantz Fanon. Tradução Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães – Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. p. 175.
[3] Liderança Quilombola da Chapada Diamantina, Território Quilombola de Vazante
[4] Liderança Quilombola da Chapada Diamantina, Território Quilombola de Baixão, falecido em 21 de novembro de 2014, após a titulação do Território de Baixão Velho em 19.11.2014 pelo Estado da Bahia.
[5] Constituição Federal de 1988.
[6] Segundo os dados do Censo Demográfico 2010 do IBGE.
[7] Com a reforma administrativa do Governo Estadual (2014) essa autarquia foi vinculada à Secretaria Estadual de Infraestrutura Hídrica e Saneamento. Antes vinculada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA).
[8] BAHIA. Anais do Seminário Justiça Ambiental pelas Águas “As Águas Não Têm Cor”. Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ), 2008. p. 112.
[9] Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
[10] Conselho Estadual das Associações Quilombolas da Bahia.
[11] Autarquia estadual responsável pelo licenciamento ambiental e outorga de recursos hídricos, vinculado à Secretaria Estadual de Meio Ambiente.
[12] Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia vinculada ao Parque da Chapada Diamantina, este produziu estudo de fauna, flora e geomorfológico sobre área do Parque que será impactado pelo barramento.