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“Desafios e estratégias de enfrentamento ao racismo religioso: a luta continua”

“eles não foram capazes durante a escravidão, depois da escravidão e nos dias atuais de calar as nossas vozes e de impedir a continuidade dos cultos às nossas divindades e ancestrais”.

Valdélio Santos Silva*

Foto: Betto Jr./CORREIO)

Começo a minha fala inspirado em uma escritora e feminista nigeriana chamada Chimamanda Ngozi Adchie que fez uma conferência para nos alertar sobre os perigos que rondam a crença e a repetição de uma “História única”.

Começar a minha fala enfatizando o ódio religioso dos evangélicos, portanto, é cair na armadilha da história única que eles mesmos criaram. Prefiro, ao contrário, começar por outro caminho, que é o de enfatizar as nossas importantes conquistas como povos que marcaram a história cultural do Brasil, das vitórias alcançadas iluminadas pelos saberes ancestrais e civilizatórios que nos orientaram. Somos exemplos de povos vitoriosos!

Falo em povos porque fazem parte dessas conquistas os africanos e seus descendentes e os povos e nações indígenas, pois ambos são as referências ancestres das religiosidades que cultuamos no Brasil.

Talvez não haja paralelo na história do mundo de povos que se associaram para criar um acervo de conhecimentos e de sabedorias, inclusive conhecimentos religiosos, como fizeram os nossos ancestrais africanos e indígenas.

A nossa história é extraordinária, e, mais do que ter contribuído para a história do Brasil, somos, de fato, responsáveis por ter formado culturalmente a mentalidade de grande parte da sociedade brasileira. Um exemplo disso é o que representa a Bahia culturalmente para o Brasil.

Nunca nos perguntamos porque os turistas de outros estados e de diferentes países do mundo nos visitam e a admiração que eles têm por nós. Uma coisa é certa, não visitam a Bahia para conhecer os nossos governantes, os palácios onde se concentram os poderosos e tampouco a arquitetura moderna do Centro Administrativo. Eles e elas estão vivamente interessadas, ao contrário, em nossas religiosidades; no colorido das nossas roupas; na potência e na fé das nossas crenças; na criatividade e gosto de uma rica alimentação que é feita por mulheres, não por essa invenção machista e elitista de chefes de cozinha ocidentais; na música contagiante que evoca ao mesmo tempo divindades e nos faz felizes nos momentos de descontração ou de alívio para as nossas dores; nas danças que dão um valor absoluto à liberdade dos nossos corpos e que repetidamente expressam que não estão à venda e não são propriedades privadas; em nossa linguagem, que muito antes de falar e expressar verbalmente, canta.

Quem nos visita quer entender a nossa filosofia de vida, não aquela que foi contaminada pelos hábitos importados e que hoje estimula parte de nossa juventude para os caminhos que os seus ancestrais não ensinaram; mas filosofia do bem, do respeito aos mais velhos que aprendemos cotidianamente em nossos terreiros, sobretudo, pelas mulheres, que são efetivamente as guardiãs dos saberes ancestrais, e que, pasmem, renunciaram às suas vidas privadas para serem líderes de uma causa, de um compromisso e das imensas e desafiadoras responsabilidades de servir aos Caboclos, Orixás, Inquices, Voduns e Encantados.

Enganam-se os que pensam que esse sacrifício e renúncia foram apenas religioso, ritual. O que essas heroínas fizeram e fazem é ensinar às novas gerações o que elas aprenderam dos seus ancestrais, somente isso. Como o ato de ensinar é ao mesmo tempo um aprendizado e uma oportunidade de criação de novos conhecimentos, foram elas, sobretudo, que organizaram e conduziram de forma sábia não só a dolorosa travessia como também indicaram as estratégias mais adequadas de como resistir e continuar.

Antes de falar do ódio religioso, portanto, é preciso entender porque eles nos odeiam! O ódio deles é revelador, antes de mais nada, da importância e da influência que nós temos na sociedade brasileira.

Está em curso um movimento para que tenhamos pela primeira vez a oportunidade de eleger um prefeito ou uma prefeita negra em Salvador. Vamos chegar lá! Tenho certeza. Mas esse fato de nunca termos uma mulher ou um homem negro prefeito eleito de Salvador, tão incompreensível para uma pessoa de fora, denuncia o tamanho da crueldade do racismo que enfrentamos cotidianamente.

Não podemos, entretanto, a partir desse fato chegar à conclusão logicamente equivocada de imaginar que isso demonstra de que não somos importantes e nem influenciamos o ritmo dessa cidade.

Não temos jornais, não temos televisão, não temos emissoras de rádio, mas, eles não foram capazes durante a escravidão, depois da escravidão e nos dias atuais de calar as nossas vozes e de impedir a continuidade dos cultos às nossas divindades e ancestrais.

As marcas das nossas culturas e os símbolos que representam a presença viva do que acreditamos estão gravadas e disseminados pela cidade, no Dique do Tororó, na Lagoa do Abaeté, no Parque São Bartolomeu; no imenso mar que guarda os segredos de nossas divindades; nas feiras livres da cidade; nas roupas brancas que cobrem os corpos negros; na delícia dos alimentos e quitutes que são até copiados e imitados, certamente porque eles são muito pobres até em criatividade; nas letras das poesias e músicas cantadas; no colorido das festas populares que crescem na mesma proporção da representatividade que não prescinde de nossa presença; nos nossos sorrisos e danças que encantam e são motivo de inveja dos que escolheram reprimir desejos e pulsões tipicamente humanas; dos que tem medo do que somos e renunciam ao deleite e o respeito de apreciar e venerar o sol, a chuva, os raios, as pedras e tudo que de belo a natureza criou.

 

Para mensurar a força de nossa presença nessa cidade ainda tão desigual, e nos últimos tempos violenta, basta recordar da quantidade de baianos e baianas que estiveram presentes nos sepultamentos das nossas saudosas e veneradas mães Menininha do Gantois, Stella de Oxóssi, Té de Oxum, Nicinha do Bogum e a Makota Valdina Pinto. Elas passaram fisicamente, mas os seus legados permaneceram vivos entre nós.

Faz sentido recordar também que foi justamente uma parte dessas grandes damas do Candomblé da Bahia que assinou um Manifesto na década de oitenta do século passado. Refiro-me às Mães Menininha do Gantois, Tetê de Iansã da Casa Branca, Stella de Oxóssi, Olga do Alaketo, Nicinha do Bogum, que até hoje, esse Manifesto, é inspirador da nossa Caminhada dos Terreiros do Engenho Velho da Federação, que completa 15 anos.

Vejam o que elas escreveram:

Não podemos pensar, nem deixar que nos pensem como folclore, seita, animismo, religião primitiva como sempre vem ocorrendo neste país, nesta cidade, seja por parte de opositores, detratores”.

As tentativas de impedir, segregar e intimidar a realização de nossos rituais religiosos são antigas e não começaram, portanto, com a chamada igreja universal e seus seguidores fanáticos e racistas da atualidade. Ainda está presente na memória dos mais velhos as perseguições ao candomblé da Bahia no período do Estado Novo, comandada por um tal de Pedrito, mas, muito antes disso, ainda no século XIX como revela João Reis, o famoso sacerdote africano Domingos Sodré, que atendia inclusive figuras da elite da cidade de Salvador da época, foi preso, julgado e punido pelo sistema colonial por ser um religioso!

Não podemos esquecer também que, ainda recentemente, o povo de candomblé só realizava os seus rituais mediante autorização dos órgãos policiais.

Alguém pode perguntar se estamos temerosos diante do atual governo que envergonha o Brasil perante o mundo inteiro e que está retirando os direitos dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, da comunidade LGBT, dos homens e mulheres negras, dos quilombolas e querem entregar as terras indígenas para os ricos e brancos explorarem as riquezas nelas existentes.

A minha resposta é: se fomos capazes de atravessar o Oceano Atlântico e viver junto com os nossos irmãos indígenas por trezentos anos como povos escravizados, e, estamos aqui de pé, com a cabeça erguida e cultuando as nossas divindades, como poderemos ter medo de um homem que não tem nem compostura de um presidente?

Se fomos capazes de enfrentar o estado de guerra, a propaganda e os atos violentos dos evangélicos contra as religiões e religiosidades afro-indígenas; se fomos capazes de nos manter íntegros diante de uma campanha sistemática, agressiva e violenta comandadas por milionários que são proprietários de jornais, emissoras de rádio e televisão, que, diuturnamente, disseminam mentiras contra as nossas religiões, e, mesmo assim, estamos completando 15 anos de nossa Caminhada, como poderemos ter medo de um presidente mentiroso, que não ama o seu país, que cultiva um ódio sádico contra as mulheres, os negros e as professoras e professores?

As adversidades de ontem e de hoje, aparentemente intransponíveis, foram incapazes de impedir a reinvenção diária de saberes, a manutenção de religiosidades poderosas, alegres, encantadoras e desobedientes. A explicação para essa resistência será compreensível se formos capazes de traduzir o sentido simbólico e sutil da ginga da capoeira; o mistério dos quilombolas que buscaram a liberdade de forma convicta e paciente para viverem em liberdade durante as trevas da escravidão; e o desafio dos nossos antepassados que foram obrigados, no início das nossas jornadas, a se embrenharem nas matas para cultuar os seus e os nossos deuses!

Navegamos em águas turbulentas, é fato, mas jamais perderemos o rumo indicado pela sabedoria dos nossos ancestrais!

Engenho Velho da Federação, Salvador, 31/10/2019

* Valdélio Santos Silva é Ogã de Xangô do Terreiro do Cobre, professor Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), cientista social, mestre em Sociologia e Doutor em Estudos Étnicos e Africanos, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2012, recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares, concedida pela Câmara dos Vereadores de Salvador.

Texto apresentado durante o Seminário 15 anos da Caminhada pelo fim da Violência e da Intolerância Religiosa e pela Paz, realizado no auditório da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), em 31 de outubro de 2019.

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