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Mulher negra não morre, mulher negra se torna ancestral

Por Cristian Sales* Coluna Negras Narrativas

MULHER NEGRA NÃO MORRE, MULHER NEGRA SE TORNA ANCESTRAL (Versão II)

Este texto foi lido para Marinete Franco, mãe de Marielle Franco, no dia 29/05/2020, no Webnário Marielle Franco: na luta por justiça social, sob a organização do NEABI e o Negras Conexões, da Universidade Federal de Alagoas-UFAL.

Feminista e ativista de direitos humanos, a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018. Por isso, na passagem de seu aniversário, no dia 27/07/2020, a Coluna Negras Narrativas refaz homenagem a essa militante que deixou um legado importante na luta antirracista e antissexista.

Ao defender os direitos humanos, Marielle também nos ensinou estratégias na batalha contra a homofobia e outros modos de dominação/opressão. Nascida na Favela da Maré, mulher negra, mãe, graduada em Ciências Sociais e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense-UFF, Marielle nos orientou a desafiar a necropolítica e as políticas de morte que ocorrem sob a tutela do estado brasileiro, as quais são responsáveis pelo extermínio da população negra, indígena, LGBTQ+ e moradores das favelas.

Dessa forma, segundo a crença iorubá, Marielle retornou ao Orun para morar junto aos nossos Orixás e Ancestrais. Por esse princípio e cosmovisão, ela inspira a manter vivo o seu legado de luta e resistência. Assim, explicamos o título e os sentidos tecidos nessa escrita-reverência: Mulher negra não morre, mulher negra se torna ancestral.

Em homenagem a Marielle Franco (27/07/2020)

Por Cristian Sales*

Quando leio os versos em Ressurgir das cinzas de Esmeralda Ribeiro:

Sou forte, sou guerreira,

Tenho nas veias sangue de ancestrais.

[…]

Sou herança de tantas outras…”

Eu entendo… Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando entendo os versos em Senhora dos Sóis de Miriam Alves:

“Sou pedra

Bruta gema diamante engastada na roda sólida

Ergui a voz, cabeça, espada

A palavra basta ressoou…”

Eu escuto … Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando releio os versos em Rota da Ancestralidade, Palmares!, de Ana Fátima:

Nosso caminhar é um rito

Aquilombado nos braços de nossos orixás,

E continuamente aldeado

na nossa matriz africana”.

De repente, uma voz de longe sussurra nos meus ouvidos: Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando sinto os versos em Davis de Denise Lima:

“Guardiã de um coletivo de luta, que luta: Eu, Tu, Nós,

Eledá!”

[…]

Eu sinto uma voz de espada nas mãos se aproximando e na ponta dos pés, seu ilá: Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando ouço os versos em Cantos de Silvia Barros:

“Maria Firmina dos Reis

Auta de Sousa

Carolina Maria de Jesus

[…]

Cantam a cantiga que embala minha revolução

Lélia Gonzales

Beatriz Nascimento

Sueli Carneiro

Luiza Bairros

Cantam a cantiga que embala minha revolução

Dandara dos Palmares

Esperança Garcia

Maria Felipa de Oliveira

Marielle Franco”

Uma roda se forma e todas elas dançam com suas ferramentas ancestrais: Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando interpreto os versos da Cartougrafia de Oxum de Valéria Lourenço:

Meu corpo

Território de linhas imaginárias

[…]

sou d´água

vivo n´água

e a cada sol-estrela-sol-estrela

crio labirintos

para que me encontres

ainda mais bela

Uma voz de abébé nas mãos se mira no espelho e dança embalando a sua doçura num reluzente amarelo ouro. E, baixinho, ela diz, renascerá em muitas outras: Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando sinto os versos em A noite não adormece nos olhos das mulheres de Conceição Evaristo, entendo porque mulher negra se torna ancestral:

“A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória”.

Quando os versos em Marielle de Patrícia Ancieto se tornam meu guia:

“Há de ecoar ao longo do século

o grito de vozes insurgentes a bradar presente

[…]

Neste país em que mulheres negras são silenciadas e arrebatadas, diariamente…”

De repente, os ventos de uma borboleta sopram… entre os raios e trovões anunciam a chuva: Mulher Negra não Morre, Mulher Negra se torna Ancestral!

Quando leio os versos de Ryane Leão:

“você é dona dos caminhos que te levam além
a sua estrada é feita de fé, coragem e afeto
e a sua poesia movimenta tantas outras mulheres negras
e dentro dela a gente dança, sorri e recomeça…”

E quando ouço, de repente, Marielle, voz ancestral:

“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra aos pobres acabe?”

“Falar de raça é falar da dominação e escravização de um povo, do apagamento, silenciamento e retirada da sua humanidade. Falar sobre raça é falar sobre a desigualdade que estrutura a nossa sociedade até hoje”.

Então, eu pergunto!

Você entendeu?

Você sentiu?

“As rosas da resistência nascem no asfalto…”.

“A gente sabe que a gente está ativa, está militando, está resistindo o tempo todo”.

Você entendeu?

Você sentiu?

As vozes,

Os sussurros,

Os passos miúdos,

Os ensinamentos,

Você entendeu?

Você sentiu?

Marinete, voz de Mãe, ventre que trouxe ao mundo mulher negra ancestral: “[…] Ninguém faz o que ela fazia. Ninguém bota a cara com a minha filha fez”… A gente colhe os ensinamentos e reconhece que a luta ainda não acabou. É do barro ancestral que se tece os caminhos da vida de mãe e filha… Mulher Negra não morre, Mulher Negra se torna Ancestral.

Você entendeu?

Você sentiu?

Nas palavras, nos sentidos, nos arrepios, no tempo atemporal… nas esquinas e encruzilhadas…

“quando se derruba uma mulher preta […]

a chama no chão avança e encosta no corpo preto inflamável da mudança”. (Mariana de Matos)

Marielle Franco, mulher negra ancestral!

Em todas as águas do mundo… no mar, nos mares, nas marés, nos rios, nas correntezas marinhas, no desaguar das ondas.

Nas manhãs… nas flores, nas plantas, nos voos das aves, na força, na energia cósmica, na cosmovisão que nos rege.

Mulher Negra não morre, Mulher negra se torna Ancestral!

*Cristian Sales é escritora e pesquisadora de Literaturas Negras Diaspóricas. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura – PPGLitCult. Este texto integra a Coluna Negras Narrativas.

Publicado em 27/07/2020

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