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Tocar tambor é um ato de resistência!

Percussionista, compositor e mestre regente da banda Aiyê, Mário Pam presta uma homenagem aos grandes alabês, batuqueiros, ritmistas e percussionistas!

Por Mestre Mario Pam*

No Brasil pré-colonial, já se ouvia os maracás, as flautas, os apitos, as buzinas, os sons percutidos nos troncos de madeira e extraídos de sementes, os pés batendo forte no chão, ritmando as cantigas sagradas dos índios, os verdadeiros donos dessa terra.

Após a invasão, ouvia-se os bumbos, as caixas de guerra, as zabumbas, os adufes, todos instrumentos de origem egípcia ou árabe que foram incorporados à Europa por conveniência e trazido ao Brasil pelas mãos dos portugueses, espanhóis e dos mouros.

Daí então desembarca no Brasil o som do lamento, da dor, da saudade, da esperança e da alegria, pois chegam às terras brasileiras os africanos e seus tambores. Os escravizados não podiam trazer seus instrumentos, mas incrivelmente eles os recriaram, pois sabiam que através de sua cultura haveria uma grande oportunidade de manter vivas suas tradições, de perpetuar e cultuar suas divindades e, acima de tudo, seria uma forma de promover a união para resistência e libertação. Assim foram recriados aqui o agogô, a cuíca, o berimbau, o atabaque, o dumdum, o xequerê, o djimbê, o ngoma e muitos outros que chegaram para fincar sua energia.  

Nas senzalas, nos quilombos, nos raros momentos de descanso, eram os tambores, que anunciavam que a África iria resistir, que a cultura não iria morrer, que existia um caminho para não nos esquecermos de nossas origens e esse caminho era a manutenção dessa cultura, custe o que custasse.

Nunca foi fácil tocar tambor. Em todos os períodos da história do Brasil os tamboleiros foram perseguidos, humilhados, marginalizados, tratados com descaso, presos e até mortos.

Quais teriam sido as impressões dos traficantes de escravos ao ouvirem os primeiros repicar de tambores africanos em suas ditas propriedades no Brasil? Muito espanto, desconfiança e repressão, seguida de permissão estratégica, pois achavam que ao tocarem, teriam menor desejo em fugir e se rebelar.

Ouvimos historicamente de seguimentos do cristianismo, com a sua perversidade e violência em nome de Deus: “Estão proibidas as manifestações profanas em terras brasileiras”. 

Nesse momento o silêncio toma conta e a dor aumenta, é tanta dor que não se aguenta e a resistência se apresenta na forma de sincretismo:

– Vamos celebrar os santos deles, mas na verdade cultuaremos nossos Inquices, Orixás, Voduns, Caboclos e Encantados! Daí então Santo Antônio se vestiu de Ogum!

– Para animar as festas, tocaremos nossos ritmos, pois são mais bonitos e podem distraí-los.

– Mas não se esqueçam! Santo Antônio é Santo Antônio e Ogum é Ogum. 

Dessa forma, os tamboleiros puderam continuar sua missão no Brasil, de forma resistente, malandra, enganando os patrícios, perpetuaram nossa arte em todo território nacional.

Existem relatos de que no Brasil escravista, alguns escravocratas utilizavam orquestras tocadas por escravizados para anunciar suas caravanas e promover suas celebrações.

Ainda assim outras barreiras haviam de se montar, pois a cultura naquele momento tendia a se enraizar e crescer, isso não era bem visto por nossos inquisidores.

Os tambores do Cores de Aidê. Fotos Toia Oliveira

As rodas de capoeira, as cerimonias do candomblé, o tambor de crioula, as rodas de samba, os maracatus, as congadas, os afoxés, os blocos afros, todas essas manifestações brasileiras passaram por dura repressão em diferentes contextos de nossa história. Atualmente vemos os terreiros de candomblé serem invadidos e seus instrumentos e imagens quebrados, por marginais, a mando de líderes de determinadas instituições religiosas, principalmente as igrejas neopentecostais. Incrivelmente eles usam nossos ritmos para fortalecer seus cultos.

Os alabês, batuqueiros, ritmistas e percussionistas são personagens que representam, com suas mãos batendo no couro, os códigos que nos aproximam de nossas heranças culturais. Ao ouvirmos o Ijexá nos remetemos aos Iorubás, ao ouvirmos o Congo ou Congo de Ouro, estaremos mais próximos dos Bantus, ao ouvirmos o Savalu ou Daró nos sentimos Geges, Daometanos. Podemos afirmar que o Candomblé é o banco da cultura negra no Brasil e porque não dizer, é peça chave na constituição do que chamamos de Cultura Brasileira!

Apesar de tanta luta, somos ainda incansáveis, colaboramos com os variados grupos de organizações sociais no Brasil e no mundo, estamos nas escolas de samba, nos maracatus, nos afoxés, blocos afros, congadas, grupos de coco, ciranda, carimbó, jongo, samba duro, bloquinhos de carnaval, charangas, nas bandas de axé music, pagodão, sertanejo, no chorinho, bossa nova, partido alto, frevo, escolas marciais e muito mais. Só na Bahia somos mais de 5 mil trabalhadores que usam a percussão como forma de sobrevivência.

Todos sabemos que os percussionistas são tratados com desigualdade na maioria dos grupos, incluindo algumas organizações sociais e empresários do show business brasileiros.

Não existem leis específicas do exercício deste trabalho e falta uma melhor consciência entre os administradores desses grupos, principalmente no que tange a real importância desses profissionais na manutenção de seus negócios ligados à cultura.

Os tamboleiros são parte da estrutura social das organizações, pois participam de muitos eventos não remunerados, em escolas, comunidades, sanatórios, presídios ou eventos políticos, dentre outros. Esses eventos, diretamente não trazem retorno financeiro aos profissionais, na verdade ajudam a promover os grupos aos quais pertencem, isso é uma ação social positiva que seria melhor gerida se os profissionais e/ou voluntários recebessem os créditos por esses feitos e tivessem seus direitos trabalhista assegurados. 

Mesmo marginalizados, o tambor não parou! Apresenta-se como um verdadeiro ato de resistência. Hoje está disseminado sobre o planeta, eles tocam nossos ritmos e cantam nossas canções na Europa, Ásia, nas Américas, Oceania e, incrivelmente, até na África.

Devemos vigiar essa apropriação cultural de perto, mas não devemos coibir, pois a cultura perpetuada jamais será acabada!

Nossa missão é respeitar a luta desse povo invisível, que arrebentam suas mãos, para que o cosmo possa ouvir e sentir a vibração de seus ritmos, povo guerreiro, incansável que não desistiram e nos presentearam com as maravilhas que fazem parte da música popular brasileira.

O tamboleiro está saindo da cozinha para sala de estar, grandes nomes da música mundial surgiram através da percussão e abriram espaços para um novo olhar sobre essa arte que faz parte do cerne da cultura brasileira. Um salve para os mestres: Bafo, Mulçumano, Jacó, Valter, Prego, Valdir Lascada, Gilmar, Marinho, Jackson, Senac, Fia Luna, Pintado do Bongo, Andreia, Careca, Edy Fran, Nana Vasconcelos, Orlandinho Costa, Carlinhos Brown, Boca Rica, Vovô Salamandra, Bimba, Jorge Alabê, Bira Reis, Jorge Gangazumba, Gary, Zoião, Mario Bomba, Ratinha, Tião, Cabo Del, Putuca, Helen, Odilon, Chacon Viana, Meia Noite, Da Banana, Tony Mola, Pastinha, Gaby Guedes, Luizinho do Gege, Marcio Vitor, Curió, Cara de Cobra, Cabo Duka, Claudio Moroto, Patrício, Arayê, Memeu, Luciano Piu, Japa System, Vivian Caroline, Nagô Beats, Marivaldo Paim, Marivaldo Stomps, Bira Monteiro, Adriana Portela, Ricardo, Bira Santos, Ademir, Gordo, Mônica Millet, Tinga, Patinho Axé, Alex Rosa, Gato, Gilmário, Pacote do Pelô, Giba Conceição, Giba Gonçalves, Jorjão Bafafé, Deri, Tico, Rafael, Cezar Veloso, Geraldinho, Jair Rezende, Leonardo Reis, Jorge Wallace, Dendê Macedo, Dudu Tucci, Zé Eduardo, Anderson Souza, Repolho, Lua, Massal, Neguinho do Samba e ao inesquecível Môa do Catendê.    

Foto: Andre Frutuoso

Uma homenagem para os grandes alabês, batuqueiros, ritmistas, percussionistas, salve nossos mestres!

Texto adaptado do discurso proferido por Mestre Mario Pam, na Seção Especial em homenagem aos Ritmistas, Batuqueiros e Percussionistas, realizado pelo Vereador Silvio Humberto, na Câmara dos Vereadores da Cidade de Salvador- BA, no dia 23 de maio de 2018.

*Mestre Mario Pam (José Mario Bezerra da Silva) é professor de Música Licenciado pela UCSal, percussionista, compositor, regente da banda Aiyê do bloco Ilê Aiyê, coordenador do Tambores do Mundo, colaborador do Centro Cultural Oficina Reciclável e professor de música lotado no município de Lauro de Freitas-BA – @mestremariopam

Em 2010, a TV Correio Nagô realizou uma matéria especial sobre os percussionistas do bloco afro Ilê Aiyê e o Mestre Mário Pam foi um dos entrevistados. Confira

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