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Professores negros da Escola de Teatro da Ufba cobram Audiência Pública para discutir Racismo

Peça da Cia de Teatro da Ufba considerada racista foi alvo de intenso protestos

Por André Santana, editor do portal Correio Nagô, em 07/06/2019

Diante da polêmica envolvendo a peça “Sob as tetas da loba”, da Companhia de Teatro da Ufba, escrita e dirigida por Paulo Cunha e encenada no Teatro Martim Gonçalves, em Salvador, que recebeu críticas e protestos pelo teor considerado racista da montagem, quatro professores da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia decidiram se pronunciar publicamente por meio de uma carta. Os quatro são os únicos docentes assumidamente negros da instituição e pedem, por meio do documento, que o fato sirva para uma ampla discussão sobre a representação do negro nas artes cênicas, em especial, nas montagens da Escola de Teatro da Ufba.

“Não se trata de julgar as escolhas da equipe do espetáculo acima citado, nem da Organização Dandara Gusmão, mas tentar iluminar o debate que carece de mais empenho no sentido de se tocar, realmente, em pontos que são necessários para o desenvolvimento e aprofundamento dos conteúdos voltados ao racismo, a misoginia, o xenofobismo e o machismo”.

No último final de semana (dias 01 e 02/06), a organização Dandara Gusmão realizou protestos durante a encenação da peça, chegando a interromper o espetáculo. Pelas redes sociais, houve quem criticasse a atitude do grupo, considerada violenta, sob argumento da quebra da “sacralidade do palco”. Houve até quem chamou o grupo que protestou de ‘organização de guerrilheira’ e ‘fascistas’, como uma professora da Escola de Teatro da Ufba que deu entrevista à imprensa local, acusando ter sofrido violência física e verbal durante os protestos. A denúncia da professora e os argumentos de quem defende a montagem circularam amplamente em perfis das redes sociais e em matérias jornalísticas.

Em um longo documento que também circula em redes sociais, a organização Dandara Gusmão apresenta as motivações do protesto, elencando o histórico de luta e resistência por representativa negra na Escola de Teatro da Ufba. A Dandara Gusmão recebeu apoio de diversas organizações do movimento social que assinam conjuntamente o documento intitulado NOTA OFICIAL DA ORGANIZAÇÃO DANDARA GUSMÃO – TETAS DO RACISMO NA ETUfba.  Leia na íntegra.

Professores negros se posicionam

Na Carta à qual o portal Correio Nagô teve acesso, os professores negros da Escola de Teatro da Ufba chamam atenção para questões que poderiam ser ponderados e debatidos em prol de um avanço das demandas da comunidade negra, reivindicadas desde o 1º Fórum Negro de Artes Cênicas, em 2017 e que já está em sua terceira edição, amplamente divulgado por este portal. Os professores também remetem a históricos de denúncias da representação negra nas artes, como o Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, de 1944, e do documentário A Negação do Brasil, de 2000, do cineasta Joelzito Araújo.

“No Brasil, a demanda que vem sendo construída com muita luta, suor e sangue é pelo rompimento desta cadeia de pensamento e práticas racistas, que só enxerga a pessoa negra no lugar da subserviência, da criminalidade e da bestialidade. É um movimento anticolonialista internacional, que possui suas características específicas em cada local que questiona o status quo da hegemonia branca.

(…)

Considerando que já houve realização de discussões na Escola de Teatro, com encaminhamentos de proposições relativas a estes conteúdos, não se pode negar que a encenação de “Sob as tetas da loba” causou em parte do público um profundo incômodo com a representação do negro e da negra na referida peça, como tanto já se sinalizou nesse espetáculo e na própria história do teatro brasileiro (como a empregada doméstica que serve sexualmente ao filho branco dos patrões, o negro assassino, estuprador e violento, chamado de animal pelos personagens brancos, a colega negra desbocada e sem modos de uma moça branca e educada, a prostituta negra lasciva, sexualizada e violenta)”.

Falta de dialogo

O documento dos docentes aponta ainda a falta de mediação dos espetáculos da Companhia de Teatro da Ufba em relação ao público como algo prejudicial ao ambiente artístico-pedagógico que deveria proporcionar debates, conversas, entre outras metodologias de mediação entre os artistas e o público.

“Na ausência de um terreno para o diálogo, as tensões se acirram, pois não há espaço para a partilha de ideias e discursos, ou para o respeito de pontos de vistas diferentes ou contrastantes”.

E citam como exemplo o ocorrido no teatro do Itaú Cultural de São Paulo, em 2015, quando o espetáculo “A mulher do trem” foi acusado de racista pelo fato de um dos atores utilizar o blackface (rosto pintado de preto) para interpretar um personagem negro estereotipado.

A postura do Itaú Cultural foi cancelar a sessão do espetáculo e, em seu lugar, promover uma ampla discussão sobre a temática, servindo-se do fato para a realização de uma mediação pedagógica e afirmativa, mostrando à comunidade que se importava com os anseios e as críticas de seu público”.

Diferente do episódio ocorrido em São Paulo e citado na carta, após as críticas de parte do público publicadas em redes sociais e do protesto realizado pela organização Dandara Gusmão, a Companhia de Teatro da UFBA manteve-se numa postura reativa que só recrudesceu e acirrou os ânimos, ao invés de ter aberto o diálogo com todos os espectadores. A atitude da instituição foi, inclusive, de solicitação de reforço na segurança do teatro Martim Gonçalves, com aparato policial, para impedir novos protestos.

Audiência Pública

Ao final do documento, os docentes propõem a realização, com celeridade, de uma audiência pública, convidando representantes da sociedade civil organizada, além de representantes da esfera pública, através de entidades de referência na área artística como o SATED e a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e SEPROMI. Também se faz necessária a presença de representantes de entidades como a Procuradoria de Justiça do MPE Bahia, o Movimento Feminista, o Movimento Negro, a OAB, a Assembleia Legislativa, a Câmara de Vereadores, a APUB, o DCE, o Reitor da Universidade Federal da Bahia e todas as partes envolvidas: Organização Dandara Gusmão e Direção, Produção e Elenco de Sob as Tetas da Loba.

Assinam a carta os professores doutores da Escola de Teatro da Ufba: Alexandra Gouvêa Dumas, Érico José Souza de Oliveira, Licko Turle e Stênio José Paulino Soares.

Leia Íntegra

Carta aberta a propósito da Cia de Teatro da UFBA

Estamos, através desta carta, trazendo formalmente contribuições para este momento conturbado e tão significativo em termos de mudanças de perspectivas para uma universidade e sociedade mais inclusiva e justa, através de discussões sobre questões da atualidade que reverberam diretamente no seio das instituições de ensino, sendo a Escola de Teatro da UFBA um campo fértil para estes atravessamentos.

A atual montagem da Cia. de Teatro da UFBA, intitulada “Sob as tetas da loba”, com encenação do Prof. Paulo Cunha, veio a dinamizar conteúdos que já vêm sendo discutidos e reflexionados dentro da Escola de Teatro, através de inquietações de discentes, docentes e técnicos lotados nesta unidade.

Não se trata de julgar as escolhas da equipe do espetáculo acima citado, nem da Organização Dandara Gusmão, mas tentar iluminar o debate que carece de mais empenho no sentido de se tocar, realmente, em pontos que são
necessários para o desenvolvimento e aprofundamento dos conteúdos voltados ao racismo, a misoginia, o xenofobismo e o machismo.

O espetáculo estreia em meio a uma conturbada relação de cunho étnicoracial, no seio da Escola de Teatro da UFBA, como um fenômeno estrutural que atravessa toda a história dessa instituição. Este fenômeno, dentro de um
delicado processo histórico, serviu para que conteúdos e proposições do espetáculo “Sob as tetas da loba” se deflagrassem como estopim para um acirramento de tensões e enfrentamentos, que culminaram com os fatos
amplamente divulgados nas mídias virtuais e na imprensa em geral.

Observamos alguns pontos que, ao nosso ver, poderiam ser ponderados e debatidos em prol de um avanço sensível e efetivo das demandas da comunidade negra da Escola de Teatro, reivindicadas desde o 1º Fórum Negro de Artes Cênicas, em 2017.

O foco aqui exposto é a questão da representação do negro na sociedade e como isso se reflete nas artes cênicas. No Brasil, esta demanda em face ao combate do racismo é muito antiga, mas basta remeter ao Teatro Experimental
do Negro (TEN) e as reflexões profundas sobre o Teatro Negro, em obras referendas de Abdias Nascimento, Leda Maria Martins e Miriam Garcia Mendes.

Na mídia televisiva, o documentário “A negação do Brasil”, de Joel Zito Araújo, expõe as chagas do racismo em relação aos atores negros e às atrizes negras na televisão brasileira e suas personagens estereotipadas e superficiais, a exemplo de empregadas domésticas, escravas e escravos, bandidos, etc.

No Brasil, a demanda que vem sendo construída com muita luta, suor e sangue é pelo rompimento desta cadeia de pensamento e práticas racistas, que só enxerga a pessoa negra no lugar da subserviência, da criminalidade e da
bestialidade. É um movimento anticolonialista internacional, que possui suas características específicas em cada local que questiona o status quo da hegemonia branca.

Considerando que já houve realização de discussões na Escola de Teatro, com encaminhamentos de proposições relativas a estes conteúdos, não se pode negar que a encenação de “Sob as tetas da loba” causou em parte do
público um profundo incômodo com a representação do negro e da negra na referida peça, como tanto já se sinalizou nesse espetáculo e na própria história do teatro brasileiro (como a empregada doméstica que serve sexualmente ao filho branco dos patrões, o negro assassino, estuprador e violento, chamado de animal pelos personagens brancos, a colega negra desbocada e sem modos de uma moça branca e educada, a prostituta negra lasciva, sexualizada e violenta).

O problema da ausência de mediação dos espetáculos da Cia. de Teatro da UFBA em relação ao público é um dado que percebemos prejudicial, já que a referida companhia faz parte de um ambiente artístico-pedagógico que deveria proporcionar outros tipos de relação entre o produto artístico e os espectadores, como debates, conversas, entre outras metodologias. Na ausência de um terreno para o diálogo, as tensões se acirram, pois não há espaço para a partilha de ideias e discursos, ou para o respeito de pontos de vistas diferentes ou contrastantes.

Vejamos, como exemplo, o ocorrido no teatro do Itaú Cultural de São Paulo, em 2015, quando o espetáculo “A mulher do trem”, encenado pelo grupo Os Fofos Encenam, foi acusado de racista por estar utilizando o blackface em uma personagem subalternizada: a empregada doméstica, com o agravante de estar sendo interpretada por um ator e não por uma atriz. A postura do Itaú Cultural foi cancelar a sessão do espetáculo e, em seu lugar, promover uma ampla discussão sobre a temática, servindo-se do fato para a realização de uma mediação pedagógica e afirmativa, mostrando à comunidade que se importava com os anseios e as críticas de seu público.

Mesmo sendo alvo de críticas severas da Organização Dandara Gusmão, além de críticas mais discretas de parte do público, inclusive de alunos e professores, a Cia. de Teatro da UFBA manteve-se numa postura reativa que só
recrudesceu e acirrou os ânimos, ao invés de ter aberto o diálogo com todos os espectadores. Dito isto, queremos tão somente refletir sobre possíveis estratégias diálogo.

Considerando experiências anteriores de outras instituições diante de questões de denúncias de racismo estrutural, acreditamos que poderia haver uma maior sensibilidade ao que vem sendo discutido no âmbito da Escola de
Teatro da UFBA, mais especificamente como foi encaminhado pelas cartas do Fórum Negro de Artes Cênicas e Fórum Negro de Arte e Cultura, nos últimos três anos.

Desta vez, os fatos ganharam proporções muito grandes, tanto em nível de acontecimentos, como em relação à publicização dos fatos e a sua possível judicialização.

Diante do exposto, através deste documento, propomos a realização, com celeridade, de uma audiência pública, convidando representantes da sociedade civil organizada, além de representantes da esfera pública, através de entidades de referência na área artística como o SATED e a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e SEPROMI. Também se faz necessária a presença de representantes de entidades como a Procuradoria de Justiça do MPE Bahia, o Movimento Feminista, o Movimento Negro, a OAB, a Assembleia Legislativa, a Câmara de Vereadores, a APUB, o DCE, o Reitor da Universidade Federal da Bahia e todas as partes envolvidas: Organização Dandara Gusmão e Direção, Produção e Elenco de Sob as Tetas da Loba. Podemos sugerir nomes e instituições.

Enquanto aguardamos um posicionamento, agradecemos antecipadamente.

Salvador, 05 de Junho de 2019

Profa. Dra. Alexandra Gouvêa Dumas
Prof. Dr. Érico José Souza de Oliveira
Prof. Dr. Licko Turle
Prof. Dr. Stênio José Paulino Soares

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