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“Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer.”

Por Samuel Vida

Sob a inspiração e licença de Exú, responsável pela linguagem, comunicação, compreensão, movimento e transformação, serão desenvolvidos, nesta coluna, ensaios exploratórios, provocativos e dialógicos, ofertados na encruzilhada das possibilidades. Para fazer jus ao nome adotado, serão apresentadas análises e leituras do cenário político, jurídico e cultural, articuladas e orientadas pelo viés do olhar afrodisaspórico, em suas múltiplas dimensões e matrizes. Sem temer polêmicas e divergências, combinando os variados recursos estilísticos e estéticos do rico repertório epistemológico da diáspora negra, transgredindo os cânones coloniais da tradição epistemicida e suas metodologias racialmente comprometidas, rejeitando a arrogante pretensão de neutralidade científica e suas expressões teóricas e metodológicas consagradas na atividade intelectual acadêmica institucionalizada.

Como uma oferenda aos ancestres, buscará o respeitoso retorno aos fundamentos epistemológicos e sofisticados aparatos teóricos da tradição afrodiaspórica, vivificando o conhecido ideograma adinkra “sankofa”, combinado com o irreverente e insubmisso aquilombamento intelectual, reverenciando a todos e todas que não pediram licença para reinventar a vida, re-existindo, reconstruindo, ressignificando, subvertendo e descolonizando os fundamentos e artefatos da hegemonia eurocêntrica moderna.

Para tanto, apresentam-se como alicerce e condição de possibilidade para enxergar com os próprios olhos – o mundo, o Brasil, a Bahia e Salvador – elementos diversos da tradição e da inovação, entendidos como indissociáveis e complementares. Integram estas fontes variados “arquivos”, secretos, públicos, orais, estéticos, escritos, performáticos, corporais, técnicos, teóricos, políticos, linguísticos etc. Encontram-se guardados nos mais insólitos e protegidos lugares de memórias e de corpos, tais como: os “segredos do sagrado negro – Eguns, Exús, Yabás, Odés e Obás; otás, opôs, ilês, ilus e ilás; itans, abôs, pejis, obis e ibás; cauris, odus, orikis, opelês e alujás; obés, ajeuns, ebós, igbins e amalás; ialodês, baloguns, iabassês, axoguns e iyalorixás;²” as insurreições negras de ontem e de hoje, dos quilombos aos movimentos negros contemporâneos; as sagrações do corpo negro em transe, incorporando e se fundindo com os Deuses e Deusas, nos movimentos de indocilidade fugidia e rebelde, materializadas na esquiva e na ginga da capoeira, na retomada anticartesiana da posse corporal estilizada no samba, no break, no funk, na quebradeira e em cada ato político-coreográfico e dramático do insurgente movimento corporal, desafiando o impossível, a gravidade, o equilíbrio, o “bom gosto”, os “bons modos” e os “bons costumes”; os irresistíveis artefatos culturais da rica produção poético-musical, que mostraram-se potentes para disseminar valores, sociabilidades, discursos e práticas democratizantes, através da elaboração lírica, da crônica social refinada, da expressão de sentimentos e vivências individuais e coletivas – freando a arrogância supremacista colonial que pretendia deter o monopólio das formas de expressão das subjetividades e identidades – e imprimindo marcas indeléveis da estética e cosmovisão negra, através do samba, blues,  rock, reggae, rap… Além de contribuir para o empoderamento comportamental, identitário e estético da juventude negra em seu desafio diário de viver com alguma dignidade num ambiente hostil e genocida; o relevante legado erudito da produção intelectual negra diaspórica, escrita ou performática,  daqueles que se incorporaram ao panteão ancestral, legando obras e trajetórias exemplares, como as de Zumbi dos Palmares, Dandara, Benkos Biohó, Esperança Garcia, Jean-Jacques Dessalines, Teresa do Quariterê, Zeferina do Orubu, Pacífico Licutan,  Luiza Mahin, Sojourner Truth, Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Marcus Garvey, W. E. Du Bois, Lima Barreto, Mãe Aninha – Obá Biyi, Aimé Cesaire, Leopold Senghor, Frantz Fanon, Malcolm X, Rosa Parks, Martin Luther King, Dedan Kimathi, Abdias do Nascimento, Laudelina de Campos Melo, Carolina de Jesus, Stokely Carmichael,  Lélia González, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Mestre Pastinha, Menininha do Gantois, Bob Marley, Clementina de Jesus, Milton Santos, Fela Kuti, Nina Simone, Maya Angelou, Beatriz Nascimento, Mestre Didi, Luiza Bairros…

Numa sociedade estruturada pelo racismo em todas as suas manifestações, torna-se indispensável analisar e ler os fatos políticos, jurídicos e as diversas manifestações culturais que medeiam nossas interações com o mundo, a partir de uma perspectiva autônoma que garanta protagonismo e autoria na construção de lugares adequados para homens e mulheres de ascendência africana neste perverso, injusto e desigual país. Portanto, a escolha de Olhos de Xangô³, como nome da coluna, busca inspiração numa das mais significativas e potentes expressões mitopoéticas que dão fundamento e direção às nossas formas políticas, jurídicas, culturais, epistemológicas, religiosas e estéticas. Que o fogo de Xangô ilumine nossas visões dirigindo nossos olhares para a justiça, o bem viver, a conquista e o exercício equilibrado do poder e o cultivo cotidiano da sabedoria e do discernimento! Que o “Leopardo dos olhos de fogo4” seja nosso emblema, alimentando as chamas que farão surgir “Palmares de novo”, como nos indicou o poeta-griot José Carlos Limeira!

Na contemporaneidade, a persistência do racismo desafia as pretensões de civilidade e democratização dos variados modelos societais, políticos e econômicos conhecidos, gerando uma intrigante perplexidade que exige uma profunda “reorientação epistemológica”5. Verifica-se um instigante paradoxo: ao avanço das formas de resistência, denúncia, conquista e ocupação de novos espaços pelos negros, opõe-se uma movimentação de incremento, sofisticação e desenvolvimento de novas formas e expressões de racismo, aprofundando seus efeitos letais e mantendo intacto seu papel de estruturador e agenciador da hierarquização das relações sociais, em todos os domínios da vida, assegurando a perpetuação do poder nas mãos dos brancos, independentemente de suas singularidades políticas, religiosas, sexuais, econômicas etc. O racismo mostra-se cada vez mais plástico, móvel, dinâmico, verdadeira “metamorfose ambulante”, desafiando as ilusões dos que acreditam poder domesticá-lo ou vencê-lo com esclarecimento e racionalidade, boa vontade e duvidosos aliados ou paciência histórica e satisfação com as conquistas arrancadas a ferro e fogo.

Do entendimento adequado desta questão, que se revela tanto profunda quanto complexa, depende a chance de sucesso na busca pela quebra da hegemonia racista que rege o mundo. O primeiro passo, exige a retomada da autonomia cognitiva e de ação política que nos vem sendo negada, sobretudo com o triunfo da “modernidade-colonialidade-racista” eurocêntrica, em todas as suas variadas manifestações e projetos societais, experimentadas nos últimos 500 anos. Nem mesmo as teorias políticas, movimentos sociais e experiências práticas autodeclaradas revolucionárias e comprometidas com os oprimidos, pretensamente portadoras de projetos de novas e democráticas relações sociais e econômicas, escaparam das lógicas coloniais e do racismo que as estruturam, reproduzindo sob novas formas a velha subalternização racial e, muitas vezes, intensificando a violência genocida.

O alinhamento acrítico dos movimentos negros com estas experiências e suas falsas expectativas de enfrentamento ao racismo tem contribuído decisivamente para que este amplie sua capacidade mutante de permanente autorregeneração.  É necessário superar a condição de reféns da dicotomia esquerda x direita7, que representa variações do mesmo tema da colonialidade-racista-moderna, possibilitando a emergência de um horizonte teórico e de uma ação política capazes de apresentar um projeto efetivamente revolucionário, o que implica a consciente ruptura com a herança colonial-racista-moderna-eurocêntrica, seus repertórios de legitimação ideológica, assim como seus arranjos econômicos, políticos e institucionais, sejam revestidos pela forma histórica capitalista, sejam revestidos pela forma histórica socialista. Afinal, são irmãos xifópagos, inseparáveis e destinados ao mesmo projeto de hegemonia colonial-racista eurocêntrica que violenta o mundo há mais de 500 anos, possibilitando a perpetuação do poder nas mãos das parcelas brancas destas sociedades.

Assim, a condição inaugural para este empreendimento reside na capacidade e disposição de ruptura com a “escravidão mental”8, como dizia Bob Marley, pois “estamos por nossa própria conta”9, como alertou lucidamente Steve Biko, para rejeitar os riscos da armadilha da “história única”10, denunciada por Chimamanda Adichie. Logo, o reconhecimento do legado civilizatório e rico repertório de saberes afrodiaspóricos, mostra-se indispensável como ponto de partida. Por isso, o título deste primeiro artigo resgata um dos mais fecundos “Owé” das tradições ancestrais preservadas pelos mais velhos nos mais valiosos e bem sucedidos “quilombos”11: as “comunidades-terreiros”12 da religiosidade negra. Mais do que nunca, a sabedoria dos mais velhos, construída na vivência e resistência às tentativas constantes de desumanização, ensina o caminho. É preciso usar os “Olhos de Xangô”, encontrar repouso e conforto, dormindo no seio do rico legado da diáspora, para sonhar utopias quilombolas e acordar diariamente com a autonomia e inventividade para forjar a própria liberdade.
NOTAS:

1 Título: Owé (provérbio) preservado nas Comunidades-Terreiro. Ainda sobre os Owé, cf Mãe Stela de Oxóssi.

² Excerto de poema do autor.

³ Olhos de Xangô: evocação da atuação de Xangô (representação da família, da continuidade existencial, da alegria e do bem viver; patrono da política, do direito e da atividade intelectual) pela realização da Justiça; o título sacerdotal “Ojuobá” é um importante “Oyê” na tradição do culto de Xangô; título de música de autoria de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal.

4 Oriki de Xangô.

Cf. Carlos Moore, Racismo e Sociedade.

Formulação da abordagem teórica Decolonial, inaugurada por Frantz Fanon.

Cf. o célebre posicionamento político de Sueli Carneiro: “entre direita e esquerda, continuo sendo negra”.

Relevante contribuição teórica do intelectual afrojamaicano Bob Marley, para a compreensão das dimensões profundas da atuação do racismo sobre a subjetividade dos negros, prolongando a experiência da escravidão, sob novas formas.

Cf. Steve Biko.

10 Cf. Chimamanda Adichie.

11  Sobre a ressignificação de Quilombo cf. Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento.

12  Cf. Marco Aurélio Luz.

 

[CARD] Colunistas_SamuelVida (1)

Ogan de Xangô – Terreiro do Cobre, Secretário Executivo do AGANJU – Afro Gabinete de Articulação Jurídica e Institucional, Professor de Direito da UFBA, Coordenador do PDRR – UFBA – Programa Direito e Relações Raciais e advogado.

O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor.

 

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