20/04/2018 | às 18h
Nos últimos dias, um vídeo mostrando a rejeição a um menino negro em um parque infantil na Espanha reacendeu o debate nas redes sociais sobre o racismo na infância.
Com a repercussão do vídeo – que já teve mais 20 milhões de visualizações no Facebook e 240 mil compartilhamentos – moradores de Bilbao, no País Basco, fizeram manifestação no parquinho com cartazes pedindo o fim do racismo.
Situações como esta ocorrem com frequência em todos os lugares do mundo, mas nem sempre viralizam para despertar uma indignação maior. Pelo contrário, são normalizadas e, muitas vezes, classificadas e encaradas como bullying, principalmente no ambiente escolar.
Desde muito pequena, a criança já consegue perceber diferenças na aparência das pessoas; na cor de pele, por exemplo. No entanto, é no mundo dos adultos que partem as orientações e posicionamentos preconceituosos. Em outras palavras, crianças reproduzem atitudes racistas e este tipo postura preconceituosa tem impactos psicológicos e sociais na vida de meninas e meninos vítimas de racismo.
De acordo com estudo feito na Universidade da Califórnia, publicado ano passado, experiências de racismo podem potencializar o desenvolvimento de transtornos psicológicos. A pesquisa aponta que a exposição à discriminação podem resultar em taxas mais altas de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ansiedade e depressão, bem como diminuição geral saúde.
IMPACTOS
Na 5ª série, Ana Isadora Dantas era a única aluna negra em uma turma de apenas 10 pessoas. As situações racistas vividas na infância, ainda hoje, aos 24 anos, impactam na vida da estudante de Direito, que há dois anos faz terapia psicológica.
“Percebo que minha postura durante o período escolar, por vezes tímida, insegura, e quando adolescente, agressiva ou irônica em momentos de conflito, tratavam-se de mecanismos de defesa, ou preenchimento de vácuos que o racismo deixou. O processo terapêutico me ajudou a reconhecer essas marcas, e ter um cuidado diferente. A própria timidez que, por vezes, era encarada como traço inerente a mim, revisitando outros momentos da infância, descobri que ao contrário do que acreditei, sempre gostei muito de falar, de me movimentar e de aparecer. Entendendo as causas, e trazendo as situações de um momento onde não sabia me defender para o consciente, posso lidar com os traumas efetivamente, de modo a guiar-me por meu verdadeiro eu”, conta Ana Isadora.
E A ESCOLA O QUE TEM A VER COM ISSO?
Ana Isadora lembra que era alvo de racismo mesmo quando o tema central era discriminação racial. “Na aula de literatura, o módulo abordou esta temática, usando músicas populares do carnaval como exemplo. A primeira “Fricote” e a segunda “Teu cabelo não nega”. A professora disse aos alunos (e o módulo respaldou) que “Teu cabelo não nega” apesar de tratar o sujeito como “mulata,” não era ofensiva, pois o compositor demonstrava carinho na letra. Um dos alunos disse que”Fricote” era a minha música. A classe riu, nada foi feito. Durante o colegial, outros momentos parecidos ocorreram, mas enquanto os professores calavam, o SOE [Serviço de Orientação Educacional] chamava de bullying”, recorda.
Com a filha de Milena Albergaria, não faz muito tempo, ano passado, a situação foi parecida. Era véspera do 20 de Novembro, Dia da Nacional Consciência Negra. Diferentemente, dos outros dias, a filha de Milena Albergaria, de apenas cinco anos, pediu para não ir de cabelo solto para escola. A mãe estranhou e percebeu que não foi um pedido ligado a uma simples escolha estética.
“Minha filha tem black power e me pediu pra ir com o cabelo preso, estranhei e perguntei o motivo até ela dizer que uma coleguinha, também negra e crespa, por duas vezes falou que o seu cabelo era feio e que ela deveria alisar. Lembro que foi na véspera do Dia da Consciência Negra. Aproveitei para falar sobre no grupo de whatsApp das mães, falei sobre como trabalhamos desde sempre a autoestima de nossa filha aqui em casa, de como tentamos ao máximo trazer bonecas negras para que ela se sinta representada e como foi doloroso para nós um comentário destruir isso. A escola se pôs a nosso favor e disse estar mais vigilante”, conta a doula e empreendedora.
A psicóloga e cofundadora da Rede Dandaras, Laura Augusta, explica que crianças expostas às experiências de racismo na escola tendem a desenvolver com mais dificuldade o processo de autoconhecimento.
“A criança pode crescer dentro de um processo de auto ódio ou em um adoecimento psíquico como a depressão e outros transtornos que podem ser desencadeados desse lugar do não reconhecimento. Além dos fatores que envolvem os processos de aprendizagem e relacionamento entre os colegas, porque quando nós falamos de racismo, não deixamos de fora a forma que aprendemos a nos comunicar com as pessoas, então a criança pode sim vir a se desenvolver de uma forma mais inibida e menos saudável”, alerta a psicóloga Laura Augusta.
A discriminação racial na fase escolar pode afetar diretamente o aprendizado e a autoestima sobre a própria capacidade enquanto estudante, explica o psicólogo e mestrando em Psicologia Social, Djean Ribeiro. Ele destaca que algumas crianças negras, a partir de discriminações recorrentes, começam a internalizar que são inferiores.
“Ao naturalizar o processo de baixa estima, as crianças negras podem desenvolver comportamentos sintomáticos, como sentar no fundo para se esquivar do racismo que as pessoas de forma confusa associam ao bullying. Outro comportamento é a diminuição do desejo de estar na escola, por ser o ambiente tóxico que fere sua autoestima”.
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Em alguns casos, esse tipo de percepção sobre si pode desencadear um processo depressivo ou de ansiedade, o que, conforme estudo apresentado à Academia Americana de Pediatria, são duas vezes mais prováveis em crianças alvo de racismo. Além das mesmas terem 3,2% mais chances de ter TDAH.
O PAPEL DA FAMÍLIA
Especialistas orientam que é fundamental a família estar atenta a comportamentos indicativos que a criança foi exposta a alguma situação racista na escola, no parquinho, e até mesmo dentro do próprio círculo familiar. Tão importante quanto é também perceber e intervir quando a criança é o reprodutor de comportamentos preconceituosos.
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“Eu e minha mãe deixamos de usar química em nosso cabelo para que minha filha se enxergasse em nós. Me sentia desconfortável, e de certa forma hipócrita, em enaltecer seus crespos alisando os meus”. Milena Albergaria, mãe de uma menina de 5 anos.
CRÉDITOS DA REPORTAGEM
Texto: Beatriz Almeida (repórter-estagiária) e Donminique Azevedo (repórter e editora)
Ilustração: Ashley Malia
Podcast: Beatriz Almeida entrevista o psicólogo Djean Ribeiro.