Dia desses eu estava mais uma vez assassinando meu tempo livre com a comunidade Brasileiros na Alemanha (BnA) do facebook com um tema que volta e meia vem à tona. Racismo. Talvez muita gente aqui tenha se calejado nos tempos áureos do Orkut com discussões desse tipo… eu pelo menos sim. Porém o que me fez novamente meter a minha mão nessa cumbuca foi o fato de alguém ter me chamado na xinxa pra esclarecer o porque da quase nula representatividade negra das candidatas a Miss Bahia 2013.
Como eu sou baiano e negro, eu deveria ter uma explicação plausível, sensata… ou até mesmo filosófica em alemão (*lach) para este fenômeno inusitado.
Pois é, antes mesmo de eu colocar qualquer posição minha no tópico, alguém se antecipou com um link para um estudo no qual se explica biologicamente da impossibilidade de haver raças diferentes. Ato contínuo meu, postei um link para um outro estudo sobre a real existência da etnicidade provando-a com uma lista de inúmeros grupos étnicos. Como de praxe nestas discussões, também surgiu alguém pra dizer que o o brasileiro não é racista, e sim, que o brasileiro tem preconceito social, que basta se ter (muita) grana para se ser aceito em qualquer lugar, blá, blá, blá, patati, patatá…
O que me fez lembrar do dilema Tostines: o preto é preto porque é pobre, ou o pobre é pobre porque é preto? E já notaram que as pessoas repetem esse discurso e não percebem que essa lógica em vez de negar a mentalidade segregacionista a reitera por duas razões (entre outras).
Primeira. Um afro-descendente teria que mostrar que tem (muito) dinheiro (esfregar na cara da sociedade “tenho dinheeeiiiroooo!!”) para ser aceito nestes tais “quaisquer lugares”. Haaallooo? (Oi?) quer dizer que se impor uma condição (seja ela qualquer) a um grupo étnico pra que ele possa freqüentar certos lugares não é racismo??
“Ah… Nós vivemos numa sociedade capitalista… Dinheiro é tudo!“
Sim, sem dúvida, dinheiro move (na ausência, na presença, no privado ou no público) toda a máquina sócio-cultural do planeta. Mas dinheiro não dá valor a nada, nem às coisas nem aos lugares, muito menos às pessoas. O valor se origina de conceitos abstratos cuja subjetividade está subordinada à história cultural de cada povo. Coloque uma família negra num condomínio fechado tipo Alphaville e pergunte aos vizinhos brancos se eles acham que os novos moradores vão valorizar seus imóveis.
Segunda. A história do afro-descendente no Brasil foi construída ao longo de sua história em se dificultando seu acesso a instrumentos de mobilidade sócio-econômica (educação básica, profissionalização, capacitação e ascensão profissional, etc… o famoso “Princesa Isabel assinou a lei áurea mas se esqueceu de assinar a carteira de trabalho”). Apesar dos recentes instrumentos de ações positivas essa situação ainda está longe de alcançar uma mudança realmente significativa. É como se esmagadora maioria da população negra sempre estivesse ouvindo:
“Nós não vamos lhes dar peixes!! Vocês só precisam aprender a pescar. Como assim vocês não tem sequer uma vara de pescar? Deixem de ser burros e preguiçosos! Parem de se fazer de vítimas! Vão trabalhar pra conseguir uma!“
Na gut… (tá bom…) já que raça nao écziste e por conseguinte racismo não poder éczistir, e preconceito social é conto de fadas (de mau gosto)… Então decidi ad hoc criar minha denominação sobre o que ocorre no Brasil.
“Tem razão, Fulana. Eu também acho que não existe racismo no Brasil. No Brasil existe é uma profunda mentalidade de segregação étnico-cultural para com representantes dos fenótipos afro-like ^^“
O povo que já conhece meu sarcasmo, ou melhor, meu senso irônico, riu, concordou e o tópico parecia que iria morrer nos cento e poucos posts. Mas aí chega alguém e escreve mais ou menos assim:
“Ah… Eu concordo com Fulana, Betrana e Sicrana… no Brasil o racismo é social… além disso racismo no Brasil é fichinha se compararmos com a Alemanha!“
“Aber mal halb lang!!” (Êpaaaa!!! Como é que é minha filha??!)
Olha, em 13 anos de Alemanha eu devo ter passado por umas três situações de preconceito!! Enquanto que no Brasil a coisa era na faixa de… ähmm… sempre!(!!) Na televisão, na piadinha “inocente” dos amigos, quando eu entrava em alguma loja, na universidade quando me chamavam de “negro boçal”, quando eu ia procurar emprego… na estratificação social…
Ah! Vocês sabiam que na Alemanha não é obrigatório a nenhum cidadão portar a carteira de identidade? É obrigado se ter uma, mas não se trazer uma consigo sempre (com apenas umas exceções contempladas pela lei de 2009 de combate ao trabalho ilegal). Enquanto no Brasil, neste pequeno detalhe da vida cotidiana de um afro-like já se esconde uma pérfida segregação. Quem de vocês Bruder e Schwester se atreve a sair de casa sem identidade?? Quem de vocês Bruder e Schwester mesmo portando identidade não sente um frio na barriga quando passa por uma Blitz??
“Mas os alemães são frios, ríspidos, carrancudos! E os neonazistas lhe chamam de “porcos sujos”!… E Hitler…“
(pois é… faça chuva, faça sol… seja rico, seja pobre, o bigodinho sempre vem!)…
“E a xenofobia…”
E por aí vai. Sabe de uma coisa? Vou fazer um desenho baseado em minha experiência nestes dois países:
Na Alemanha é assim.
Você tem fenótipo Ausländer-like, mas abre a boca e fala umas sentenças lógicas inteiras em alemão sem (ou com pouquíssimos) erros idiomáticos discorrendo sobre sua tese defendida em sua universidade (ou pelo menos escola técnica profissionalizante) e sobre seus planos profissionais pro futuro. O alemão (que assume ser xenófobo) baixa a crista.
No Brasil é assim.
Você tem fenótipo afro-like, mas abre a boca e fala um parágrafo inteiro em uma língua estrangeira sem (ou com pouquíssimos) erros idiomáticos discorrendo sobre sua tese defendida em sua universidade federal e sobre seus planos profissionais pro futuro. O brasileiro (que jura “de pé junto” que não écziste racismo no Brasil) diz (ou pensa) “nego metido!!”
Simples não?
“Então a Alemanha é o paraíso?! Então você renega o Brasilzão?! Fique por aí, rasgue seu passaporte brasileiro, cuspa no prato que…”
“Moment!!!” (Perainda!!!!).
A Alemanha tem pontos negativos??? Claro!! E eu me sinto tão confortável em expo-los quanto me sinto em expor as coisas ruins do Brasilzão.
Sim! Eu sou brasileiro! O Brasil é meu país, minhas raízes, minha pátria, minha língua! A Bahia é minha terra, é meu povo, é meu sangue e é linda! Mas tudo isso não me impede de maneira alguma de ter uma postura analítico-crítica para com as formas torpes nas quais a sociedade se estrutura. E isso em ambos ao países! Além disso, não écziste lugar neste planeta onde não haja preconceito! E pelo “andar da carruagem”, nós afro-likes ainda deveremos encarar onde quer que queiramos viver nele a “mentalidade de segregação étnico-cultural” por pelo menos mais umas 4 gerações.
Por exemplo. Em fevereiro de 2012 o tribunal de Koblenz considerou a Blitz feita em um trem contra um universitário como legítima e legal. O estudante negro alemão, alvo desta blitz que se sentiu discriminado e havia entrado com o processo, levou o caso até as instâncias superiores do estado as quais consideraram a ação dos policiais (apesar deles tentarem se resguardar no princípio do “Verdachtsunabhängige Personenkontrollen” – revista e controle de pessoas independente de suspeita prévia – o que na prática se revela como o puro exercício do Racial/Ethnic Profiling) como preconceituosa e contra o artigo 3o. da constituição que garante igualdade de tratamento sem discriminação com base em gênero, etnia, orientação sexual, origem. O estudante ganhou a causa e o perdedor teve que se desculpar oficialmente em nome de toda a polícia da Alemanha.
Apesar de ser trágico-like eu fiquei conversando com meus botões… Imagine?! Os alemães se baseiam em uma lei (parágrafos 22 e 23) pra permitir algo que ocorre todo santo dia no Brasi(!!!) sem lei nenhuma, einfach so (assim, sem nenhuma cerimônia) e, diga-se de passagem, com aquele calor humano, com aquela alegria de viver com os quais os policiais típica e carinhosamente nos dispensam (já estão se acostumando com minha ironia? rsrsrsrs). A coragem do estudante afro-alemão da Universidade de Kassel (sorry, nao achei o nome dele em nenhum lugar) impulsionou a campanha Stoppt Racial Profiling.
Also… (Bem…) Pra concluir esse incentivo à reflexão vou fazer dois aportes.
As candidatas de um concurso elitista, historicamente étnico-cultural-segregacionista (cuja figura das maiores ainda é a baiana Marta Rocha) são na esmagadora maioria european-like e representam a “beleza” feminina de um estado considerado uma das maiores populações negras do mundo (fora da África).
O presidente da Alemanha, Joachim Gauck, foi recentemente para a nossa terrinha para abrir oficialmente o Ano da Alemanha no Brasil. Um dos órgãos que cuida dos assuntos relacionados a universitários e pós-graduados estrangeiros – Alumniportal Deutschland – criou já há algum tempo a campanha “Trained in Germany” e na época se procurou “modelos fotográficos” entre os estudantes estrangeiros na Alemanha para representarem seus vários países de origem. Adivinha quem este órgão alemão escolheu para representar com sua imagem os estudantes brasileiros neste encontro em São Paulo?
Was soll ich mehr sagen?? (Vocês querem que eu diga mais o quê??)