Os leitores da pesquisa sobre relações homoafetivas em Salvador, realizada pelo Instituto Futura, se depararam com uma cidade mais conservadora do que poderiam imaginar. O número de pessoas favoráveis a relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero (na verdade, a maioria está fora dos padrões de gênero) já é maioria no Brasil, mas em Salvador cai para 33%. E esse número ainda é 4% menor do que na pesquisa anterior.
(Não sei se a pesquisa segue a metodologia das demais.)
Uma parcela grande de pessoas se declarou indiferente. Se ela for ignorada, os “votos válidos” da maioria das pessoas seria favorável. Se ela for considerada, no entanto, provavelmente estaria somando-se às pessoas contrárias às relações gays e lésbicas.
Contraditoriamente, os soteropolitanos afirmam apoiar a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu as uniões estáveis em maio de 2011, com procedimento normatizado pela justiça baiana no início desde mês.
Mas o mais interessante são as questões despertadas pela relação entre sexualidade e raça, que não aparece de forma qualificada na pesquisa, mas está intimamente relacionada a indicadores de classe. O nível de escolaridade impacta favoravelmente na aceitação, como também as regiões pesquisadas: as mais pobres têm maior índice de rejeição.
Para muitos, a interpretação natural é de que as pessoas negras são mais intolerantes. Muitas pessoas bem intencionadas caem nessa armadilha. Mas pesquisa é sempre uma questão de interpretação qualificada, e conclusões apressadas induzem ao erro.
Um dado retirado da pesquisa ajuda a mostrar a importância de qualificar as interpretações. Na relação entre gênero e sexualidade, as mulheres aparecem mais tolerantes em relação às uniões. De fato, somos tentados a concordar empiricamente com esses dados. As lésbicas, no entanto, sempre nos lembram que mulheres heterossexuais são extremamente lesbofóbicas.
Elas são tolerantes, sim, mas com os gays. Como a identidade é propensa ao reducionismo, somos levados a nos referenciar na hegemonia quando pensamos em determinada identidade. Significa dizer que tanto homens quanto mulheres responderam a esse questionário lembrando-se das relações gays. As lésbicas são menos visibilizadas.
Qualificar a análise sobre escolaridade e bairro também é fundamental. A classe média tende a dar respostas politicamente corretas e bastante desconectadas de suas práticas cotidianas. Já a gente negra tende a reagir negativamente diante de qualquer questão polêmica. Pesquisadores sociais são orientados a deixar as pessoas falarem abertamente. Qualquer pesquisa mais profunda pode detectar as contradições na repetição dos discursos à disposição dos agentes sociais, e vai considerar a relevância da praxis no confronto dialético com esse discurso.
Com efeito, enquanto a classe média cria bares e boates gays, nas comunidades eles circulam nos mesmos lugares que os heterossexuais. As religiões de matrizes africanas são bastante mais tolerantes do que as religiões ocidentais. E enquanto cabeleireiros são orgulhosos e assumidos, engenheiros precisam teatralizaar uma identidade heterossexual para sobreviver no trabalho.
Outro erro comum é dizer que os jovens são mais tolerantes baseados nessas pesquisas. As pessoas mais velhas respondem de maneira mais conservadora às pesquisas, mas agem de forma mais tolerante. Pesquisas qualitativas provaram que adolescentes em fase de afirmação sexual são extremamente intolerantes. É jovem a maioria dos assassinos de gays, lésbicas e travestis por ódio. (Os adultos matam mais por questões passionais, o que não significa dizer que a homofobia não opera aí.)
Significa dizer que negros e idosos são mais tolerantes na prática, no inverso do que diz a interpretação corrente de pesquisas como esta? Não. Significa que não devemos cair no discurso fácil de concluir que homofobia (ou machismo) é coisa de preto. Essa é a tática mais simples para dispersar as forças dos segmentos sociais oprimidos, impedir que construam alianças, dificultar o enfrentamento da dominação comum.
Também não significa que as pesquisas devam ser desconsideradas. A resposta a uma pesquisa precisa ser qualificada e confrontada com a prática cotidiana. E se a prática indicar mais homofobia (e machismo, pois eles sempre andam ligados) na comunidade negra, é preciso combatê-la sem cair no discurso fácil de que “negros são machistas”.
Não adianta avaliar quem é mais ou menos homofóbico, se homens, idosos, negros. Racista, machista e homofóbica é a estrutura em que vivemos e quem se beneficia do conjunto dela! É o inimigo comum que deve ser combatido. Os demais são adversários que não vamos ignorar, tampouco podemos condenar. O mesmo poder que confere à mulher negra as condições de dominação das lésbicas as subjuga aos homens negros, por sua vez abaixo das mulheres brancas na hierarquia social, e estas tampouco estão no topo. Não é difícil de imaginar quem, nessa guerra de todos contra todos, reúne as ferramentas para vencer a disputas das raças, classes, gêneros e sexualidades, para ficar em 4 elementos…