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Somos todas vilãs

A vilã Wanda apanha de Lucimar, a mãe da mocinha Morena, em cena exibida no capítulo de terça 30 de abril (Foto: Salve Jorge/TV Globo). Nas demais fotos, a personagem apanha da própria Morena.

A cultura da violência contra a mulher nas novelas esconde a atração pela vilã dentro de nós

 

A novela Salve Jorge está superando as demais no quesito pancadaria. Virou notícia que a vilã Wanda passa tantos capítulos apanhando que mal lhe sobra tempo para fazer maldades. Vários folhetins usam esse recurso para atrair a atenção do público, que adora confusões, diante da impotência das mocinhas para enfrentar armações nas tramas. Mas também subjaz uma noção de justiça no mínimo questionável acreditar que vilanias novelescas possam ser compensadas com a imposição de dor física.

Todas as vilãs fazem maldades, mas não são suas ações que as tornam tão odiáveis. Antes, o telespectador está interessado na má-fé que as move. Tanto é que algumas personagens “erram”, mas têm oportunidades de se redimir até o final da história, por mais graves que tenham sido seus “equívocos”. Para ser uma vilã de verdade, a maldade precisa ser intrínseca à personalidade ou uma escolha de vida.

O que assusta nas vilãs é justamente o que mais atrai nelas. São poderosas e inteligentes. Algumas cometem o pecado de ser sexualmente libertárias. A ambição também é apresentada como traço negativo da personalidade de muitas delas. Raramente têm fraquezas. E os preconceitos e a crueldade vêm como mero corolário, uma espécie de confirmação, da sentença já dada a partir da sua personalidade. As vilãs não são julgadas por seus atos, mas por seu “caráter”. E o “caráter”, atributo exigível às mulheres, está associado ao comportamento e não às ações.

Simbolicamente, mulheres acusadas de fazer mal por prazer já foram chamadas de bruxas e queimadas em fogueiras. Não dá pra contar quantas “genis” já foram repudiadas na história. As vilãs representam as bruxas e genis de uma sociedade não tão moderna assim, temidas por ser poderosas e repudiadas por escaparem ao controle das normais de gênero e sexuais.

E se as surras em vilãs são inseridas à exaustão nas tramas para atrair audiência, é o próprio público que está usando seu poder inquisitorial para “dar uma lição” nas vilãs. Ele está mostrando às mulheres como elas devem agir (mocinha) e como não devem agir (vilã). E, sim, o melhor argumento nesse caso é a força, já que as vilãs cometeram todos os pecados imperdoáveis.

Pela ideologia dominante, você não pode bater numa mulher “decente”, mas pode bater em uma “puta” ou agredir sexualmente Nicole Balhs. Afinal, as desigualdades de gênero são impostas – violentamente impostas –, mesmo que culturalmente. Violência simbólica que pode se reproduzir concretamente na vida real. As vilãs apanham como uma espécie de demonstração do que a sociedade fará com as mulheres caso se desviem do caminho definido. Histórias como a da universitária Geise Arruda, que sofreu severa coação moral dos colegas de faculdade por usar roupas curtas e chamativas, comprovam isso. Geisa seria uma vilã perfeita para uma novela das sete – e nem precisaria fazer maldade alguma para ganhar o papel.

O que poderia justificar o apelo à violência é a desigualdade de instrumentos entre mocinha e vilã. De fato, as vilãs costumam ser muito mais poderosas, deixar as mocinhas encurraladas, sem outra saída senão gritar e esbofeteá-las. Mas qualquer cena de violência contra as vilãs desmonta esse argumento. O que se vê nessas cenas é um misto de revanche com um julgamento moralista de caráter. O julgamento das vilãs é o julgamento das mulheres. A violência empregada é contra a mulher. E é parte da cultura. Não importa que outra mulher seja autora da violência. A questão é que a sociedade aprova quando uma mulher é punida com violência.

De fato, é preciso entender as novelas como produtos comerciais que apresentam uma realidade simplificada. Noções maniqueístas de bem e mal, certo e errado, podem ser ferramentas para que o público tenha acesso a um conteúdo que não exija reflexões, mas apenas lhe permita esquecer as agruras da própria vida e relaxar diante da TV. Embora legítimo, é subestimar demais o público acreditar que essa simplificação não pode conviver com questionamentos da vida fora das telas. O maniqueísmo, aliás, escancara a complexidade humana.

A verdade é que o público gosta das vilãs. Não apenas porque são elas que movimentam a trama, mas também porque as pessoas gostariam de estar no lugar delas. Queriam se sentir fortes, poderosas, invulneráveis. Muitos abririam mão das maldades (não exatamente do poder de produzi-las), mas jamais prefeririam o lugar da mocinha que passa a história inteira sofrendo, como se as mulheres precisassem pagar caro por um punhado de felicidade. O público é em parte mocinha, mas sobretudo vilã.

Mais um motivo, portanto, para bater nas vilãs. Parece contraditório, mas não é. Quem bate nas vilãs são mulheres e também homens comuns tentando provar para si próprios que estão certos em resistir aos desejos inadequados à imagem de um mocinho ou mocinha (com todas as diferenças de permissões que a diferença de gênero carrega).

Mas nem tudo é perfeitamente controlável. As mocinhas têm “errado” cada vez mais, até certo limite. O público pede e aprova personagens mais complexos, movidos por sentimentos pouco nobres, como são as pessoas comuns. A história de amor perde interesse para tramas da vida cotidiana, obviamente retratadas com todos os recursos que a tornam mais interessante que a vida “real”.

Também é cada vez mais comum às vilãs escaparem às normatizações. Não é à toa que muitas novelas brasileiras têm optado por proporcionar um final feliz para elas. Simbolicamente, fogem do cenário da novela, para um outro país, para uma outra realidade. É como se em algum lugar persistisse a esperança de que nossas vilãs possam um dia ser libertadas.

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