Fala proferida no Festival Latinidades 2015, no dia 23 de Julho, em Brasília
Por Viviane Ferreira
Hoje gostaria de começar a dispor dos meus 15 minutos de fala desejando boa tarde com um viva à nós e às aguas! Na sequência quero agradecer à Ana Flávia, por não me deixar esquecer nos últimos 365 dias, aproximadamente, da importância de nós mulheres negras do audiovisual escrevermos sobre nossa experiência de fazer cinema… quero dizer a Ana que os juros dessa dívida se alimenta da dor que sinto ao me deparar com o papel em branco para impregná-lo de realidade sem ficção.
Na pessoa de Bruna Pereira, quero agradecer ao Latinidades pela oportunidade e espaço para partilha de lampejos reflexivos. À Chaia (Dechen) e Jaqueline (Fernandes), quero brindar a realidade de partilharmos sonhos. Na figura de Jana Damasceno, gostaria assumir a minha felicidade, tremedeira nas pernas e satisfação de partilhar uma mesa com mulheres que são minhas referências. Caço na plateia as figuras de Elcimar Pereira, Vilma Neres, Larissa Fulana de Tal, Everlane Moraes, Yasmin Tainá, para agradecer a presença de todas e todos com toda deferência de uma jovem muzenza.
Ao ser convidada para prosear em uma mesa cujo tema é “Representação de Mulheres Negras no Cinema”, em uma atividade do cabedal organizativo do Latinidades, baixei a banca… separei livros à muito lidos, filmes à muito vistos. Empilhei as coleções: obras raras – o cinema negro da década de 70; Memória: encontros de cinema negro Brasil, África e Caribe Zózimo BulBul; LesÉtalons de Yennenha grandes prêmio do Fespaco de 1972-2005. E me disse ‘tô’ armada, será uma explanação e tanto.
Então minhas madrugadas já estavam comprometidas da noite de 23 de abril (chegada do convite para esta mesa) até a data de hoje. Tudo era motivo de conexões reflexivas para partilhar com vocês hoje. Convites para integrar a equipe de projetos de amigos brancos que do negrume da noite para o clarão do dia descobriram que é necessário falar de preto e de cultura negra, afinal os editais específicos estão bombando, e a minha didática missão de responder: “grata pelo convite, mas não vai rolar, minha formação política não me permite ser capa preta para branco”. Daí, enveredamos por diálogos que se iniciam com: “você não está sendo muito radical? Somos amigos, pô! Estamos do mesmo lado”… Até chegar o dia que desfrutaremos dos mesmos privilégios jamais estaremos do mesmo lado, até lá somos próximos para não nos perdermos de vista na batalha. E lá se vai uma amizade. Depois de um posicionamento desse só me resta enfiar a cara no meu próprio destino… não há dúvidas de que alguém me espera na esquina.
Tranquilo… afinal de esquina nós entendemos, se os convites para figurar como “chapa preta” não fossem corriqueiros, cada vez em maior quantidade e não apresentasse sua faceta mais elaborada tentando no promover de “chapa preta” à “chapa feminista para homens pretos”. Essa versão que me deixa sempre cabreira e me faz clamar pela astucia de Dandalungua para perceber quando o homem preto, emissor do convite, é um aliado que deseja partilhar visão de uma perspectiva racial comum a nós dois, ou um desses muitos homens pretos que circulam por aí caçando mulheres negras com energia e parcos recursos para colocá-los ao seu dispor. Quando é o caso do segundo tipo de homem negro, o percurso começa quase que nos mesmo lugar, respondo: “grata pelo convite, mas minha formação política não me permite ser chapa feminista para homem preto”. Passa por: “é por isso que nós negros não vamos para lugar nenhum. Gente como você por ter prosperado um pouco, esquece dos irmãos”. E lá se vai uma quase irmandade. E o número de seres me esperando na esquina vão se multiplicando.
Já disse que não tenho problema nenhum com a esquina, o problema aqui reside na quantidade e frequência absurda com que esses convites surgem e como eles contribuem para minar a possibilidade de visualizarmos mais narrativas negras feministas, ampliando o nosso leque de representação de mulheres negras no cinema por mulheres negras fazendo cinema. Em um país em que os recursos destinados ao audiovisual passa por um duto quase que inatingível para nossa existência racial, é de perder a fé na humanidade quando olhamos para os resultados de editais como Curta Afirmativo, para falar do recurso mínimo possível de disputar, e nos deparamos com um número gigantesco de “chapa preta para branco”. Brindamos prêmios como o de Larissa Fulana de Tal, Vilma Neres, Renato Cândido, mas precisamos ter coragem de falar sobre essa condição de “chapa preta para branco” sem medo de sermos taxadas como revanchistas ou radicais.
Marimba Ani, uma estudiosa e antropóloga na perspectiva africana, em um de seus estudos nos diz que: “É uma característa inerente à cultura (europeia) preparar os membros desta para serem capazes de agir como amigos em direção a quem eles consideram como inimigos, para que sejam capazes de convencer aos outros que vêm para ajudar quando, na verdade, vêm para destruir os outros e sua cultura. Alguns podem “acreditar” que eles tenham engolido sua própria retórica – talvez uma conveniente auto ilusão. O comportamento hipócrita é punido e recompensado pela cultura europeia. A retórica ética ajuda a sancioná-lo. A cultura europeia não pode ser entendida, em termos da dinâmica de outras culturas, sozinha. É uma cultura que gera hipocrisia – em que a hipocrisia é um paradigma – um padrão de comportamento.”
Marimba aprofunda dizendo que “[…] A humilhação da África encontra-se não só na violência, que o Ocidente nos habituou. Também está na nossa recusa em entender o que acontece conosco”.
Quando me enfiei no meu escritório e baixei a banca separando livros e filmes tinha a intenção de olhar para as mulheres negras trazidas para as telas pelo olhar comunista de Sembene, em “La Noire de” (A negra de – 1966), ao demonstrar a altivez de uma jovem mulher negra tendo sua espinha quebrada pelo colonialismo francês. Gostaria de refletir a celebre interpretação de Sônia Santos no filme “A Deusa Negra” (1979) de OlaBalogun. Gostaria de trazer o deleite das interpretações de Lea Garcia e Ruth de Souza em “As filhas do vento” (2205), de Joelzito Araújo. Falaria sobre a Carolina (2003) de “Jeferson Dê” e tantas outras obras primorosas e que têm status de clássico para todos nós. E como não esqueço o ensinamento de Sueli Carneiro, tenho interiorizado a importância de visitarmos e revisitarmos nossos clássicos. É um bom habito que cultivo e recomendo. Visitar nossos clássicos bagunça e aquieta a alma. Isso nos ajuda a nos sentirmos.
Mas ao baixar a banca, e me ver muito bem servida de clássicos negros masculinos me deparei com uma pergunta que me faço há 10 anos, exatamente, “Cadê Dandara, cineasta carioca, diretora de O Gurufim da Mangueira?” Mulher negra que nos primeiros anos dos anos 2000 se deu a tarefa de realizar um filme com um set todo negro, após o sucesso que do “Gurufim da Mangueira” ter-lhe rendido na mídia o título de primeira cineasta negra brasileira. Ainda que saibamos, que nossos passos vêm de longe, e antes de Dandara muita água rolou debaixo da ponte, me questiono porque nunca trombei com ela nesses 10 anos de transito e militância no cinema negro. Ao perguntar sobre ela para um colega negro de profissão, recebi como resposta “aquela ali, se achava a dona do mundo, arrogante e nariz em pé, ninguém suporta trabalhar com aquela menina, chegou se achando demais no meio cinematográfico e teve a espinha quebrada”.
Lembrar dessa resposta me pôs frente a frente com o ponto de virada reflexivo para essa tarde. Não me interessa falar sobre a representação de mulheres negras no cinema, sem a perspectiva das mulheres que fazem cinema. Não posso contribuir com a conveniente auto ilusão do sistema excludente, simplificando a representação de mulheres negras no cinema, comparando as convergências e divergências entre pilhas de filmes realizados por homens brancos, mulheres brancas, poucos homens negros, e raras mulheres negras, nessa ordem necessariamente, em nossa história cinematográfica.
Refletir sobre a representação de mulheres negras no cinema é não nos recursarmos a entender o que está acontecendo conosco. Estamos em uma constante disputa de poder, e cotidianamente o que temos brindado é a possibilidade de não termos nossas espinhas quebradas para não sermos legadas à caixinha do esquecimento em nossa memória recente. É preciso reconhecermos a jornada de Kbela, que surge como uma heroína capaz de recolher as Cinzas de nossa condição humana, borrifando esperança na solidão de cada Jerusa que existe dentro de nós.
Integrar o time de mulheres que tem legitimidade para posar na foto da representação de mulheres negras fazendo cinema significa todos os dias dormir como MUMBI, presa aos limites e proteção de minha própria cama, e vagando na imensidão de pensamentos que me impõe a consciência do limiar que vivemos todos os dias, adormecendo de cansaço com a certeza de que há muitas pessoas na esquina na espreita para quebrar minha espinha. E na solidão cotidiana de uma Jerusa, toco a vida, sempre a espera da visita de uma Silvia, que não raro bate a minha porta com o pseudônimo de Elcimar Pereira, Renata Martins, Juliana Vicente, Larissa Fulana de Tal, Vilma Neres, Yasmin Tainá, Anahí Borges e suavemente partilhamos nossa existência, esquivamos para lá, gingamos para cá e amenizamos a nossa solidão e escassez de recursos para continuar fazendo cinema, renovamos votos de referencias unas das outras e encerramos a visita com a melodia da frase “estamos juntas”!
Com toda desconfiança e falsa necessidade de disputa incutidas em nosso cotidiano, é preciso sororidade. E uma representação justa das mulheres negras no cinema brasileiro depende do fortalecimento do pacto de sororidade entre as mulheres negras que fazem cinema.
Por fim , dedico esse nosso momento de hoje à Ouvidora da Defensoria Pública do Estado da Bahia, Vilma Reis, empossada na data de hoje, depois de um dos mais belo exemplos de sororidade que vivemos na nossa história politica recente
Viva a nós e as águas!
* Viviane Ferreira é cineasta e advogada com atuação voltada para direitos autorais, direito cultural e direito público. Com um olhar cinematográfico referenciado no cinema de Zózimo Bulbul e Glauber Rocha, assina a direção dos documentários: Dê sua ideia, debata (2008); Festa da Mãe Negra (2009); Marcha Noturna e Peregrinação (lançamento previsto para este ano). Na ficção inicia com o curta experimental Mumbi 7 Cenas pós Burkina (2010), estrelado por Maria Gal. E chega ao Festival de Cannes 2014 com o curta-metragem O dia de Jerusa (2014), estrelado por Léa Garcia e Débora Marçal. Preside a Associação Mulheres de Odun e é Sócia-fundadora da empresa Odun Formação & Produção.
Fonte: Revista Afirmativa www.revistaafirmativa.com
Fotos: perfil pessoal de Viviane Ferreira no facebook