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Você é fruto de uma educação heteronormativa?

Por George Oliveira*

A heteronormatização é um des/serviço empregado na consolidação do imperativo heterossexual em detrimento de outras formas de manifestações da sexualidade e da materialização de normas regulatórias que são, em partes, aquelas da hegemonia heterossexual normativa. Esta acaba por receber um valor positivo e privilegiado, enquanto as que se distanciam desta matriz são fortemente desvalorizadas. (OLIVEIRA JUNIOR E MAIO, 2016, p. 160 e 161)


O Supremo Tribunal Federal – STF julgou duas questões que podemos considerar como conquistas na desconstrução da heteronormatização. A primeira delas considerou inconstitucional a lei municipal (Lei 1.516/2015) de Novo Gama/GO, que proíbe o ensino do que chamaram de “ideologia de gênero”. A decisão considerou que a lei foi julgada procedente e a arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 457, proveniente da Procuradoria-Geral da República (PGR), em sessão virtual realizada de 17 a 24/04.

A segunda, em uma ação que argumentou que a proibição da doação de sangue por homens homossexuais configura-se como preconceito, por maioria de votos (7×4), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais dispositivos de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que excluíam do rol de habilitados para doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes”. O julgamento foi concluído no dia 08/05, em sessão virtual iniciada no dia 1º de maio. (Fonte: Portal do STF)

A escola não pode ser refém de erros e costumes do passado e é urgente a implementação de ações concretas e efetivas para quebrar esse ciclo de violências que tornam a heteronormatização de gênero uma regra dada e imutável. Inúmeros são os motivos que tornam a escola com cotidiano heteronormativo um ambiente bastante nocivo para estudantes. Abordaremos alguns deles neste texto. Essa hostilidade presente no ambiente escolar leva a um pensamento único, que segrega e hierarquiza “lugares sociais” para meninos e meninas ao não possibilitar um pleno desenvolvimento humano e uma formação cidadã de forma integral. Esse é um grande embate a ser travado na construção dos currículos das escolas e seu caráter identitário.

Uma análise breve para alimentar o nosso debate é o uso das cores, algo que já é determinado para muitas crianças, mesmo antes do nascimento. Dos antigos enxovais para bebês até os recentes “chá revelação”, em que reúne-se um grupo de pessoas para o anúncio do sexo da criança, em quase sua totalidade, o que se observa é que trazem marcadores de um binarismo de gênero. Isso por estarem imbuídos de valores heteronormativos ao se considerar que a cor rosa, por sua já construída ideia de delicadeza, deve ser direcionada para as meninas; e a cor azul, por outras construções sociais que seguem a mesma lógica, deve ser destinada para meninos. O que para algumas pessoas pode parecer “uma mera questão cultural”, para outras apresenta um conservadorismo ou um retrocesso.

Ilustração: Dika Araújo

Causa-nos espanto ainda maior quando tudo isso é proferido em discursos e práticas por pessoas que estão à frente da condução das políticas públicas governamentais do século XXI. “Menino veste azul, menina veste rosa” foi a primeira “proposta” da ministra Damares Alves no que chamou de “nova era” para o Brasil, capitaneada por sua pasta no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A frase foi divulgada por diversos veículos de comunicação na primeira semana da sua até então pífia atuação nesse tão importante cargo, no início do mês de janeiro de 2019.

Declarações dicotômicas, simbolicamente discriminatórias e marcadamente heteronormativas, refletem na vida de estudantes, que sofrem bullying na escola, e também na vida de pessoas trans, que sofrem as mais diversas violações de direitos. Um dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais traz dados que colocam o Brasil na liderança do ranking entre os países do mundo que mais matam travestis e transexuais.  Sobre esses dados, o Site Brasil de Fato divulgou em 30 de janeiro de 2020:

O número de assassinatos em 2019 [124 pessoas transexuais] foi menor em relação aos últimos dois anos. Em 2017, foram 179, ante 163 em 2018. Entretanto, Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e autora do dossiê, pondera que, apesar da queda dos números, não há diminuição efetiva da violência. Apenas de 1º a 24 de janeiro de 2020, por exemplo, houve um aumento de 180% no número de homicídios em relação ao ano anterior. “Qual pessoa trans se sente segura no Brasil? Saímos de casa e não sabemos se iremos voltar”, afirmou Benevides aos Brasil de Fato.

A era do binarismo de gênero e de sexualidade não tem nada de novo e o Estado brasileiro, a cada dia, dá demonstrações de uma autoridade pautada no retrocesso em relação a esse tema. Numa escola que trata as relações de gênero de forma heteronormativa, um dos primeiros motivos que causam danos à formação de crianças e jovens consiste em impossibilitar ou criar barreiras para a convivência com a diferença. Por não ser valorizada, a diversidade passa a ser evitada e combatida, quando não tratada como uma doença.

A criação de um currículo crítico e emancipatório possibilita a formação de uma sociedade mais inclusiva. Faz-se importante lembrar que o currículo está relacionado com as subjetividades e também está  presente em todas as ações do ambiente escolar, para além da sala de aula, como na administração e gestão, rumo aos modelos de formação da sociedade. É também responsável pela construção da identidade a partir de saberes e conhecimentos que são selecionados para tal.

A invisibilidade pode ser rompida ao se trazer o debate, uma vez que as relações heteronormativas estão presentes em diversos aspectos da escola. Esse texto não pretende nem esgota o debate e também não dá a visibilidade necessária ao tema. Talvez possa ser encarado como uma tentativa de sair da inércia e, de forma empática, tenta uma proximidade com a realidade de várias pessoas que enfrentam essa cruel e violenta realidade. É preciso dar um basta e desconstruir a educação heterenormativa, que impossibilita a autonomia de estudantes e nos condiciona à manutenção do alarmante primeiro lugar mundial no assassinato de pessoas trans.

Sobre essa situação devemos refletir até que ponto a negação, a omissão e o descaso têm contribuído para a perpetuação dessa questão nas escolas e na sociedade como um todo. A questão não é somente imaginar o quanto a educação é heteronormativa, mas compreender o que podemos e estamos fazendo para mudá-la.

*George Oliveira é doutorando em Educação/ UFBA grbo2003@yahoo.com.br                             @grbo26

Revisão de texto: Sandra Souza

  • Outras referências:

http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1

https://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeba/article/view/2292/1598

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