Joseane Rodrigues é jornalista e pós-Graduanda em Comunicação e Marketing, pela Faculdade da Cidade do Salvador.
“Eu sou filho de preto. Sou brasileiro. Branco, se você soubesse o valor que o preto tem, tu tomavas banho de piche pra ficar negrão também. E não te ensino a minha malandragem nem tão pouco minha filosofia. Quem dá luz a cego é Bengala Branca e Santa Luzia”.
Foi assim, cantando “Que bloco é esse?”, do Ilê Aiyê, ritmada pela banda de percussão Meninos da Rocinha do Pelô, que iniciou o 20 de Novembro, dia de exaltação a Consciência Negra, e a 11ª edição da “Marcha Zeferina”, pelas ruas do São João do Cabrito, seguindo até o Parque São Bartolomeu, em Salvador.
Nem a forte chuva que insistia em cair no momento da marcha desanimou os participantes. Enquanto grupos de capoeira, percussão, teatro, balé folclórico e ativistas sociais seguiam em marcha – cantando e gritando palavras de ordem como “Fora Temer” e Nenhum direito a menos” e realizavam performances – eram exaltados, encorajados e aplaudidos pelos admiradores e curiosos. “Resistam. É a natureza abençoando vocês”, gritava a moradora Rosemary Rodrigues, da janela de sua casa.
A 11ª “Marcha Zeferina” é promovida pelo Movimento de Cultura Popular do Subúrbio – MCPS, que fica localizado no Parque São Bartolomeu, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Tem o objetivo de contribuir para o fortalecimento das conquistas pela igualdade racial oriundas das lutas travadas desde os tempos de Zumbi, e reúne jovens negros e negras da região que estejam envolvidos em causas sociais e culturais.
“Essa marcha vem fortalecer e valorizar a cultura negra. Mostrar que o subúrbio está vivo. Que a periferia está viva. E nossa intenção é salientar para a juventude que a arte educa, informa e transforma”, declarou o coordenador do Grupo de teatro Face Oculta Evandson Teixeira. Ele ainda ressaltou que todas conquista alcançadas até hoje vêm sendo batalhadas há muito tempo. “Não podemos esquecer dos nossos antepassados, de que tudo que conseguimos hoje é graças a eles que lutaram bravamente por equidade social”.
Homenagens – Em 2016 a Marcha levou em consideração outras “Zeferinas” e homenageou duas mulheres negras, engajadas nas lutas pelas causas sociais, de raça, gênero e atuação na comunidade. Além da personagem central, Zeferina, a rainha quilombola, que lutou contra a escravidão em Salvador.
De origem angolana, foi trazida para Salvador ainda criança junto com sua mãe, Amália. Foi com ela que aprendeu a tradição dos ancestrais, como acessar os poderes dos orixás para manter a sua espiritualidade e realeza soberana diante dos bárbaros.
Uma líder com muito poder, a qual todos reverenciavam e seguiam suas estratégias de luta. Fundou o quilombo do Urubu, na região onde hoje está localizado o bairro de Pirajá e o Parque São Bartolomeu e, estrategicamente, traçava planos para invadir a cidade e matar os brancos escravocratas, e assim libertar todo o povo negro.
Programou o levante, como eram chamados os ataques, para o dia de Natal, 25 de dezembro, daquele ano (1826), mas os aquilombados foram surpreendidos pelos soldados no dia 17 de dezembro, quando aconteceu um grande confronto no qual Zeferina, mesmo lutando bravamente, acabou sendo presa.
A rainha quilombola seguiu presa no Forte do Mar, local que eram presos os quilombolas, até sua morte. Conta-se que o corpo de Zeferina foi enterrado em terras no Cabula.
“Zeferinas” – Foram escolhidas e homenageadas como “Zeferinas” a atuante na comunidade Camila Silva e a ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (entre 2011 e 2014), Luiza Bairros, falecida em julho deste ano, vítima de um câncer no pulmão.
Luiza, uma gaúcha de Porto Alegre, que nasceu em 1953, graduou-se em Administração de Empresas e Administração Pública, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Ciências Sociais (UFBA), doutora em Sociologia (Universidade de Michigan – USA), além tantas outras atuações, ainda participou como Consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para questões de gênero e raça.
Teve todo seu histórico de militância negra e feminista construído na Bahia. Quando se mudou para Salvador, em 1979, Luiza começou a participar de movimentos sociais, integrando-se ao Movimento Negro Unificado (MNU). Com sua militância ativa e política, viajava pelo País realizando palestras e trabalhando intensamente nas articulações das lutas contra o racismo institucional, além de ter sido responsável por criar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), voltado à implementação de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades raciais.
“Luiza foi uma mulher de fibra, que lutou pelas causas sociais e raciais em todo lugar que esteve. Por onde ela passava lutava um pouco por nós, negras e negros. Ela merece ser lembrada e homenageada, sempre”, declara Sandra Cerqueira, uma das Coordenadoras e Produtora Cultural do evento.
Ainda falando sobre as “Zeferinas” homenageadas, Sandra explicou sobre a escolha de Camila Silva. “A gente procura sempre valorizar as mulheres negras da nossa comunidade, elevando a autoestima delas, através da dança e estética. Camila é atuante no movimento e vem realizando, durante muitos anos, um ótimo trabalho gratuito, permitindo que os jovens se fortaleçam a partir da dança. Por isso resolvemos empoderá-la este ano”.
Camila, que era sorrisos e muita dança, às vezes no chão, junto com o povo, às vezes em cima do trio, destacando seus passos e beleza, relatou que nem sempre foi assim. “Já fui muito discriminada por ser mulher, negra e de periferia. Hoje estou me sentindo vitoriosa. É um prazer representar as mulheres negras da minha comunidade. Foi um presente ser indicada como um símbolo de resistência, inspiração e fortalecimento da cultura afro-brasileira, no Subúrbio”.
A mãe do pequeno Akym Alencar, 3, começou no MCPS aos 12 anos, onde participava das aulas de dança, e de todas as oficinas que podia. Sempre atuante e engajada nas questões culturais, se especializou na dança, participou da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia – Funceb, faz parte do grupo 100% Afro-Indígena e, em 2016, participou da Noite da Beleza Negra do Ilê Ayê, bloco carnavalesco com mais de 40 anos de história, onde disputou o título de “Deusa do Ébano”, considerado o maior concurso de beleza negra do país.
Histórico – Ao longo desses dez anos, centenas moradores, ativistas culturais e líderes comunitários ocupam a Avenida Suburbana, no dia 20 de novembro, mostrando a força da região e ressaltando seu valor histórico. A Marcha Zeferina traduz uma grande ação de promoção e valorização do Parque São Bartolomeu, considerando seu legado religioso, cultural e espaço que representa símbolo de luta pela igualdade racial.
A iniciativa já contou com cerca de 40 grupos culturais e 60 escolas da rede pública de ensino da região, e vem, ao longo desses anos, contribuindo para dar visibilidade aos membros da comunidade e dos movimentos que fazem cultura, que lutam por direitos e reforçam o chamado sentimento de pertencimento do território, em uma região que sofre grande marginalização desde sempre no processo de formação da cidade de Salvador.
“É por isso que desenvolvemos todos os anos essa marcha, para trazer a comunidade para o engajamento e fortalecer nossa cultura através dos projetos e oficinas de estética negra, política, arte, educação e tantas outras. Precisamos manter a cultura viva”, ressalta Sandra Cerqueira.