Home » Especial Mídia Étnica » Cabelo e corpo como forma de afirmação

Cabelo e corpo como forma de afirmação

Texto, fotos e vídeos: Jaqueline Almeida, Valdiria Verdiano e Donminique Azevedo

Sim, homens e mulheres que vieram de África nos porões dos navios negreiros trouxeram memórias e tradições. Mesmo passando pela “Árvore do Esquecimento”, as lembranças da terra onde nasceram e viveram boa parte de sua existência não se apagam – e foi desta forma que muitas tradições foram passadas, através da tradição oral. Assim o é no Candomblé, religião de matriz africana professada por grande parcela da população de Salvador, ainda que não confessada abertamente.

De acordo com dados do último Censo populacional, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, apenas 0,3% da população declarou professar as religiões Umbanda e Candomblé. O número é o mesmo do recenseamento dos anos 2000. Em 10 anos, nada mudou, conforme a pesquisa do IBGE.

A negação da fé pode ser explicada pela estigmatização. Aliás, tudo que provém dos povos escravizados vindos do Continente Africano é estigmatizado e, na maioria das vezes, perseguido. Dados da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) revelam que mais de 70% dos casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

Diante de tantas violações e perseguições, o povo negro vem buscando estratégia para sobreviver, afinal são mais suscetíveis às mortes físicas e simbólicas.

Superar a negação da estética negra tem sido uma destas formas de sobrevivência. Nesse contexto, é possível citar o movimento “Panteras Negras” nos Estados Unidos, que começou no início dos anos 1970 e promoveu a utilização da estética afirmativa como forma de reafirmação da identidade negra e de confronto com a sociedade eminentemente branca ou embranquecida. Foi uma forma de enaltecer os valores e o poder do povo negro. O cabelo black power é um clássico exemplo desse período. São expoentes do movimento negro no Brasil: Abdias Nascimento, Lélia Gonzales e Milton Barbosa.

De lá para cá, o movimento cresce, floresce e fortalece. A visibilidade ainda é queixa recorrente, mas diversas ações, on e off line, têm buscado potencializar as movimentações negras. No Brasil, por exemplo, o mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra reúne ações que visibilizam a questão étnicas e raciais no País. Portanto, a convite do Instituto de Mídia Étnica percorremos eventos, marchas, reuniões e espetáculos durante o Novembro Negro de 2016 fotografando, filmando e entrevistando famosos(as) e anônimos(as) com o objetivo de enegrecer a estética preta que empodera e transforma.

MARCHA DO EMPODERAMENTO CRESPO: REAFIRMAÇÃO DA ANCESTRALIDADE E DA BELEZA AFRODESCENDENTE

No último dia 13 de novembro, a Praça do Campo Grande foi tomada por uma grande quantidade de cores, estilos e muita estética pós diaspórica, a 2ª Marcha do Empoderamento Crespo.

Na luta pelo fim do extermínio da juventude negra, o ato reuniu três mil pessoas numa caminhada que foi a até a Praça Castro Alves, começou a tomar corpo no início da tarde com a performance de uma das organizadoras da Marcha Nadja Santos, conclamando todas as mulheres a assumirem sua ancestralidade numa saudação: Sou Negra!!! Seguindo-se a isto, declamações de poesia feitas espontaneamente pelo público que versaram sobre temas como racismo, empoderamento e estética.

Segundo uma das coordenadoras, Naira Gomes a realização desta marcha tem como finalidade central o fortalecimento de ações para a preservação das vidas negras. “O objetivo estarmos juntos e estamos em rede e nos fortalecermos contra o racismo, até porque a estética é o principal alvo do racismo para nos estigmatizar”. A antropóloga explica ainda que durante todo o ano um grupo de 9 mulheres que formam a comissão organizadora da Marcha realiza diversos encontros terapêuticos, oficinas e rodas de conversa para debater o tema em escolas, ONG’s e eventos com a temática racial, em novembro acontece o ponto de culminância de todo este trabalho tanto pelo simbolismo do mês como para visibilizar o trabalho realizado ao longo de todo o ano.

O início da caminhada foi marcado pelo som dos tambores de diversas organizações como a Marcha Mundial de Mulheres, A Banda Didá e o canto de Matilde Charles cantando o Tributo a Martin Luther King que conclamou a todas e todos a lutar pela paz, fazendo alusão ao extermínio da juventude negra. Dados do mapa da violência no Brasil observam que na década compreendida entre 2002-2012, houve um decréscimo de 32,3% na morte de jovens brancos ao passo que os jovens negros vitimados aumentaram 32,4%, é dizer que para cada branco morto, morrem 2,7 negros.

Para todos os lados era possível notar cabelos crespos em diversos penteados e cores que iam do loiro dourado passando pelo rosa, azul e roxo. A autoestima destes jovens era palpável, além dos cabelos o visual era complementado por brincos, óculos e roupas que visivelmente reforçam a estética afrodescendente.

“O momento é ímpar para negros e negras, a marcha serve de inspiração para outros lugares além de Salvador e mais, não se trata de modismo, exprime a representatividade reforçando a auto estima e o fortalecimento da história negra”, avaliou a educadora e mestranda em Estudos Étnicos e Africanos Dailza Araújo. Ao ser questionada sobre a possibilidade de todo este cenário de jovens assumindo seus cabelos ser um modismo passageiro, ela afirma que “o mercado estético está atendendo a demanda do público negro, pois não se trata de moda nem tendência, trata-se da conscientização e da representatividade que a estética traz e que foi plantada ao longo do tempo e explodiu com maior força para esta geração e que deixará frutos para as próximas”, pontuou.

1

Educadora e mestranda em estudos étnicos e africanos Dailza Araújo

As crianças merecem um destaque à parte no cortejo. “Gosto do meu cabelo e na escola ninguém estranha, tenho coleguinhas com cabelo black power também, apesar de não ter nenhum professor negro”, contou João Santos, 6, que estuda em escola particular no município de Camaçari. Já Júlia Lima, 8, diz que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito por conta do seu cabelo crespo e gosta de usá-lo solto com laços e acessórios.

Os pequenos parecem não ter sido contaminados com o preconceito, seja pela tenra idade ou por fazerem parte de um grupo onde o cabelo crespo e a visibilização da cultura e da estética negra são naturais.

4

Na procura por emprego ou no dia a dia são várias as manifestações sutis ou não que procuram moldar os traços negroides, geralmente as falas são feitas como “sugestão” para “arrumar o cabelo”.

Alisar o cabelo muitas vezes perpassa pela possibilidade de estar empregada ou não. A estudante de museologia e estagiária do Museu de Arte Sacra da UFBA Alana Priscila, 21, relata que antes deste estágio foi rejeitada por algumas empresas por ostentar uma cabeleira volumosa, crespa e tingida de lilás. Mesmo com tantos desafios não se deixou dominar pelos “nãos” e manteve a firmeza em não sucumbir ao alisamento.

A família muitas vezes é o primeiro núcleo a reforçar o preconceito da sociedade, é a primeira barreira que será transposta, depois dela fica bem mais fácil derrubar as outras tantas com a qual se debaterá ao longo da vida. Larissa Cristina, 14, já tentou usar os cabelos naturais, mas por não se identificar com esta estética optou por utilizar química para alisar os cabelos. “Não se trata de moda, é meu gosto mesmo, diz ela que foi até a marcha para encontrar-se com alguns amigos e estava acompanhada da mãe que alisa os cabelos também.

O caminho foi aberto, mas há muito ainda a se fazer no sentido de empoderar homens e mulheres que valorizam sua ancestralidade, sua cor, sua estética, ter a cor da noite na pele e reafirmá-la cotidianamente nos cabelos, nas roupas e no corpo, requer coragem.

Debate

Outra ação que movimentou o Novembro Negro foi o debate realizado na Casa da Música, no Parque Metropolitano do Abaeté, em Salvador. O evento reuniu adolescentes e jovens para discutir o tema “A estética negra como empoderamento”.

Participaram do debate a fundadora do projeto “Bonita Também” Tereza Rocha, a blogueira do “Gata Crespa Cacheada” Aline Silva e Dira Verdiano do site “Ubuntu: Mulheres Negras”, com mediação da jornalista Donminique Azevedo. Na oportunidade, foram abordadas questões ligadas  à representatividade, consumo, arte, autoafirmação e estética diaspórica negra.

“A ideia de fazer o debate fora do centro de Salvador foi justamente para possibilitar que ações como estas também sejam realizadas na periferia da cidade. O retorno foi super positivo, uma vez que os participantes puderam dialogar sobre essas questões para que o movimento cresça e permaneça. Não queremos apenas tombar. Queremos uma estética como um ato político transformador”, diz o diretor de produção criativa do Coletivo Cacos, responsável pelo evento que integra o projeto Ciclos de Boa Prosa.

scroll to top