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Reparação na Comunicação

Uma ação afirmativa inédita para os afrodescendentes

Marcos Rodrigues é jornalista

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Qual o papel dos meios de comunicação na atualidade? De saída, uma questão que cabe ao cidadão médio contemporâneo refletir para se orientar na sua vida social. Primeiro porque, até antes mesmo de ir para a escola, ele já se familiariza com os recursos tecnológicos mais avançados e segue o discurso, seja de texto ou de imagem, como norma de vida com pouca leitura crítica.

Essa breve observação traduz o comportamento do público perante os meios, que pouco se preocupam com a nossa real diversidade, como lembra Muniz Sodré. Logo, não é difícil compreender que a sociedade brasileira é calcada num quadro de desigualdade e num processo imaginário em que prevalece o vírus do estereotipo e estigmatização do negro através do jogo de aparência.

Esse processo imaginário ajuda na construção cognitiva do homem baseada em valores e conceitos eurocêntricos. O discurso apresentado pelas elites representa o racismo trazido pelos colonizadores na intenção de tornar o outro invisível ou expô-lo numa condição subalterna. E o quadro social brasileiro pouco mudou ao longo de mais de 300 anos de escravidão e pouco mais de cem anos de pós-escravidão.

Algumas iniciativas de reparação foram implementadas para combater o racismo na comunicação, porém algumas lacunas ainda persistem tendo em vista a mentalidade vigente com marcas do século 19. Alguns momentos foram de mudança, mas para que tudo continuasse como estava, vide hoje a resistência do trabalho escravo e o tráfico de pessoas, apesar das leis.

Com técnicas aprimoradas, antes com a escravidão, agora com o capitalismo global, percebe-se a continuação de uma política social excludente e por extensão, alienante, da nossa gente. Eis que é preciso uma leitura da relação entre o papel dos meios de comunicação, o sistema de dominação e a construção da história. O processo é dialético e deve levar em conta a existência das comunidades e a participação popular nos fatos históricos.

Hoje, a TV e a internet encurtaram o tempo e a distância, romperam fronteiras. Apesar da evolução e da velocidade do tempo, os elementos formadores da estrutura social também atualizam o conflito de classes. Mesmo com o lema da diversidade na ordem do dia, não é difícil perceber a exclusão do nosso povo nos vários contextos. A experiência escolar em todos os níveis nos mostra claramente que a classe dominante (leiam-se latifundiários, militares e empresários) é quem controla o sistema de comunicação social e o marco conceitual da ciência.

A Bahia é um estado de maioria negra, o maior contingente fora da África capaz de impressionar o olhar estrangeiro mais distraído do planeta. Este dado reflete o nosso território que, apesar de conhecer suas relações interétnicas, menospreza tal realidade através do fenômeno da discriminação racial.

Temos numa sociedade com grande dificuldade em se olhar no espelho e estabelecer relações de alteridade num plano de isonomia. Seguindo ainda o raciocínio de Sodré, vale lembrar que o racismo das elites, gerado através do imaginário, pode ser reproduzido ainda hoje por linguagem logotécnica com muita sutileza e eficácia. Por isso, cabe a nós uma leitura crítica permanente da comunicação no processo histórico para reconhecer a discriminação em todos os níveis.

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Estamos na era das políticas de ações afirmativas como forma de buscar reverter esse quadro de exclusão e a ideologia de recalques raciais. Nesse sentido, o Instituto de Mídia Étnica acaba de promover um curso de formação para profissionais e estudantes interessados em combater o racismo midiático. A organização se dedica a facilitar o direito à comunicação e o uso da tecnologia, e realizar projetos de inclusão digital voltados para a população afro-brasileira, em Salvador.

Não é de hoje que iniciativa desse porte se faz necessário na Bahia. Afinal, por que precisamos dominar a comunicação e seus códigos? Esse questionamento em tom de provocação foi deixado no início do curso pela socióloga Vilma Reis, que alertou ainda ser possível a militância em qualquer área profissional, já que o que precisamos é fortalecer essa rede.

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Alguns incentivos foram dados durante o curso pelos facilitadores. A jornalista Maíra Azevedo lembrou que não somos empreendedores e por isso devemos desenvolver a criatividade na condição de profissionais de comunicação negros perante os olhos da sociedade. O profissional de comunicação deve ser articulado e saber a quem se dirigir. Outro lembrete deixado por ela foi que todos devem criar seu próprio banco de fontes de informação.

A jornalista e doutoranda em Antropologia Cleidiana Ramos compartilhou com a turma seus conhecimentos tanto da prática jornalística como da pesquisa sobre a formação social e política do Brasil. Ela reforçou que, como profissionais da comunicação, precisamos entender as origens das contradições e falhas do Brasil como nação, para compreendermos os fatos da contemporaneidade, inclusive a permanência do racismo.

Os encontros de leitura e produção de imagem, com Fafá Araújo e André Frutuoso, foram momentos de introdução à reeducação do olhar que devem ser seguidos para sempre. Reconhecer a história da fotografia negra, seus profissionais, trouxe uma grande perspectiva na área para o grupo. Também a oficina de produção e edição de vídeo, com Rosalvo Neto, foi de grande utilidade. Apesar de tudo ser facilitado pelo uso do aparelho celular, se constituiu uma grande novidade para alguns o trabalho de edição digital.

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Outro momento aguardado foi a oficina de mídias sociais digitais, com o publicitário e fundador do Mídia Étnica, Paulo Rogério. A partir de sua experiência na Universidade de Harvard (EUA), forneceu pistas sobre como produzir e engajar conteúdos nas plataformas. Para isso, contou com a participação da influenciadora digital Monique Evelle, que apresentou as diversas iniciativas que tem criado como o Desabafo Social.

O curso foi facilitado, inclusive, com videoconferências, onde pudemos interagir com profissionais em São Paulo (Ana Flávia Magalhães), nos Estados Unidos (David Wilson) e na Colômbia (Jhon Edward Ângulo) para uma possível comparação entre as realidades, além de termos acesso aos estudos sobre a história da imprensa negra, revelando que as nossas experiências na comunicação possuem um rico e inspirador passado.

Como atividade de extensão, o Instituto de Mídia Étnica promoveu a Semana Nacional de Democratização da Comunicação. A atividade foi aberta ao público com mesas de debates e oficinas (prioritárias para os alunos do curso). A intenção mais uma vez foi reunir pessoas e interesse na comunicação inclusiva voltada aos afrodescendentes, através de relatos de experiências, atividades práticas e sustentabilidade. Muito válido pra quem soube prestigiar.

Portanto, devemos colocar em prática o nosso aprendizado que brota como grande possibilidade de fortalecer nossa rede. Essa é a nossa força para nos firmar socialmente como sujeitos e agentes multiplicadores. A estratégia é aprender a língua do inimigo para vencer com ela, sem esquecer-se de usar a união e a solidariedade, nossas armas principais, pois, parece que desaprendemos essa lição a cada dia.

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